O exército paralelo
Jair Bolsonaro nunca escondeu o desejo de ter um Exército para chamar de seu. Como as Forças Armadas não se curvarão a seus arroubos autoritários, em paralelo ele incentiva – e não é de hoje – um plano alternativo para manter mobilizados grupos que se dizem dispostos a atuar como “exércitos informais” capazes de, se necessário, pegar em armas para defendê-lo. A aposta envolve militares de baixa patente organizados em associações de classe com forte influência bolsonarista e grupos de atiradores que têm sido beneficiados pelas sucessivas decisões do governo liberando o acesso a armas. Não que o país esteja na iminência de ser tomado por milícias. Bolsonaro, no entanto, joga perigosamente com a ideia, da mesma forma que Lula costumava lançar a ameaça de inflamar as ruas com fileiras de militantes sem terra sempre que se via sob algum risco no período em que esteve no governo – foi assim, por exemplo, quando estourou o escândalo do mensalão.
Um dos focos da estratégia está nas polícias militares dos estados. O episódio do PM morto em Salvador no último domingo, 28, e a reação imediata de apoiadores do presidente que o alçaram à condição de herói expuseram o quanto o estado-maior bolsonarista aposta no “poderio” de seus apoiadores armados como um elemento capaz de assustar quem se opõe ao governo. O soldado Wesley Soares chegou ao Farol da Barra fardado e armado com um fuzil e uma pistola. Tinha viajado 300 quilômetros em carro próprio do balneário de Itacaré até a capital baiana. Com o rosto pintado de verde e amarelo, ele desceu do carro e passou a gritar frases desconexas. “Venham testemunhar a honra ou desonra do policial militar da Bahia”, dizia, entre outras coisas. Horas depois, anunciou que havia “chegado o momento” — iniciou uma contagem regressiva e disparou uma rajada de tiros contra as equipes de elite da polícia que o cercavam. Houve reação. Atingido, o soldado chegou a ser socorrido, mas morreu ao dar entrada no hospital.
O episódio, transmitido ao vivo, imediatamente ganhou as redes sociais de parlamentares bolsonaristas, que passaram a estimular uma insurreição da PM contra o governo baiano, do petista Rui Costa, que ordenara um lockdown por causa da epidemia. A deputada Bia Kicis, presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, disse que o policial foi morto por se recusar a “prender trabalhadores” e por “dizer não às ordens ilegais do governador da Bahia, Rui Costa”. Logo o protesto violento do policial foi transformado em um ato de bravura contra as medidas de isolamento social baixadas pelos governadores não alinhados ao Planalto, que os apoiadores do presidente consideram extremas. “Esse soldado é um herói”, afirmou a deputada no Twitter. A mensagem foi apagada horas depois, mas já tinha ganhado vida própria. O deputado Eduardo Bolsonaro, filho 01 do presidente, e o blogueiro Allan dos Santos, além de altos funcionários do governo, logo aderiram à tentiva de emplacar a narrativa de que o soldado Soares fora morto por defender a liberdade dos baianos.
Embalada pela repercussão dos vídeos do soldado sendo alvejado, o entourage bolsonarista ainda tentou fazer com que o movimento se espalhasse para outros estados. Associações de cabos e soldados de todo o país foram bombardeadas com pedidos de adesão. “A insatisfação existe e é latente. É um caldeirão. Pode haver um desdobramento. É um cenário de possibilidades, por causa de todo o clamor. Só falta alguém chegar e acender o fósforo”, afirma Lucio Bolzan, da associação de militares do Espírito Santo. “O que está acontecendo é que esse barril de pólvora está prestes a explodir. Não só na Bahia, mas no Rio Grande do Sul, no Espírito Santo, no Acre, no Amapá. Não é uma exclusividade da Bahia”, faz coro o soldado Jackson Eugênio, de outra associação que representa cabos e soldados da PM capixaba.
Em 2017, a entidade que Eugênio agora preside atuou na organização da greve de PMs que parou o Espírito Santo e espalhou terror e medo pelo estado — há evidências de que, já àquela época, pessoas ligadas a Bolsonaro ajudaram a incendiar o movimento. Embora diga que há um barril de pólvora prestes a explodir, ele nega que os policiais estejam dispostos a servir de “massa de manobra” para Bolsonaro, especialmente se a ideia for colocar em marcha qualquer projeto autoritário, mas admite que há disposição para mobilização. “Vamos brigar, mas sem ultrapassar os limites da legalidade”, afirma. Em Brasília, parlamentares da chamada “bancada da bala” têm mantido interlocução permanente com as entidades que representam os policiais.
Aos poucos, os clubes de tiro têm se transformado em núcleos de apoio político ao presidente. Na manhã de 12 de março, por exemplo, uma mensagem se alastrava como rastilho de pólvora entre os CACs. “Não tem como cobrar de um general que vá à guerra sem que os soldados agarrem seus fuzis e, sob a ira de suas intenções, saiam à luta”, dizia o comunicado, publicado inicialmente na página oficial da CAC Brasil, entidade que representa atiradores de todo o país. Naquele mesmo dia, Bolsonaro tinha editado mais quatro decretos facilitando a posse e o porte de armas. Eufóricos, atiradores ligados à associação bradavam que Bolsonaro é “um general” dos CACs. No início do mês passado, o presidente da entidade, Marcelo Midaglia, anunciou que estava mudando o propósito da CAC Brasil, pois a situação do país, nas palavras dele, havia “chegado ao limite”: “Eu represento milhares de pessoas e associados, então a minha obrigação moral é fazer alguma coisa. Não dá. Bolsonaro é nosso general, mas sem o nosso apoio ele não vai partir para guerra nenhuma”.
Midaglia se refere a Bolsonaro, a si próprio e a Marcos Pollon, presidente da Pró-Armas, outra agremiação que defende os CACs e interesses da indústria armamentista, como “generais”: “Ele (Pollon) é um general. Como que ele vai para a guerra sozinho, sem ter soldado para apoiar? Eu sou o general de quem me segue. Sem vocês eu não sou ninguém”. Antes de virarem lideranças de atiradores e clubes de tiro, Midaglia e Pollon ganhavam dinheiro com assessoria na área de licença de porte e posse de armas. A projeção e o prestígio dos dois junto à família Bolsonaro aumentaram depois que eles passaram a liderar manifestações de apoio ao presidente na frente de quartéis e em Brasília. Pollon tornou-se assíduo nos gabinetes da capital e, até havia pouco, se gabava de ter acesso livre ao agora ex-ministro da Justiça André Mendonça. A aproximação se deu após Mendonça publicar uma portaria que contrariava o interesse dos atiradores por determinar a implantação de chips eletrônicos em armas de fogo. Coube então ao filho 03 do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, levar a queixa ao então ministro e defender que a norma deveria ser revogada.
Após se aproximar de Eduardo Bolsonaro, Pollon passou a colaborar pessoalmente com a formulação de novos decretos de armas. No Palácio da Justiça, os encontros dele com Mendonça nunca apareceram na agenda oficial. A relação com o Ministério da Justiça tem uma explicação. Todas as novas normas que beneficiam os atiradores precisam passar obrigatoriamente pela pasta. A Crusoé, Mendonça negou que tenha agido por influência de Eduardo Bolsonaro e do líder dos CACs. “É natural da atividade parlamentar a contribuição para a construção dos entendimentos do ministério sobre diversos assuntos que tramitam na pasta”, disse. Indagado duas vezes se condena a postura dos atiradores de se dizerem dispostos a “pegar em armas” para “defender o presidente”, o então ministro da Justiça, que nesta semana voltou a chefiar a Advocacia-Geral da União, não respondeu. Inicialmente, ele negou ter tido encontros com Pollon. Depois, confrontado com os vídeos postados pelo atirador nos quais Eduardo Bolsonaro se vangloria da influência sobre a pasta, Mendonça afirmou que, “revendo os registros”, constatou que teve, sim, encontros com o chefe da entidade dos CACs.
Outro grupo que tem sido inflamado pelos discursos de Bolsonaro é formado por militares da reserva. No último dia 21, um domingo, dezenas deles participaram de uma manifestação no Rio de Janeiro para comemorar o aniversário do presidente. Juntaram-se, no ato, a atiradores e militantes das alas bolsonaristas mais radicais. Alguns dos presentes vestiam boinas vermelhas e uniformes das Forças Armadas e se apresentavam como uma espécie de “exército informal” de Bolsonaro. O presidente participou do encontro a distância, por meio de uma chamada de vídeo feita a partir do telefone celular da deputada estadual Alana Passos. Ele saudou o grupo. “Se o caldo entornar, a gente está do seu lado. Feliz aniversário, comandante”, disse, eufórico, um dos organizadores da manifestação. Durante o ato, um militante mais exaltado gravou e pôs na internet um vídeo para ameaçar opositores do presidente: “Aê, pessoal da canhota, da esquerda. Quer dizer que vocês querem derrubar nosso presidente? Deixa eu falar um negocinho para vocês, é rápido. Ele não está sozinho não, tá? Junta o que vocês tiverem de melhor, e tenta”.
Crusoé procurou as associações de atiradores para que explicassem as declarações postadas em seus perfis oficiais nas redes sociais em que se colocam como exércitos a serviço de Bolsonaro. Depois do contato, as postagens em que esse tipo de mensagem aparecia de maneira mais explícita foram apagadas. O vice-presidente da CAC Brasil, Marcio Menezes, afirma ser contra as manifestações desse tipo. “Essa coisa de redes sociais está muito inflamada. Há um equívoco nessas colocações, que são uma cortina de fumaça”, disse. Está cada vez mais claro, porém, de onde partem as tentativas de inflamar a “tropa informal”. De Brasília, Bolsonaro se regozija com a disposição e o ímpeto de seus seguidores mais exaltados. Espera-se que as instituições se mantenham alertas também quanto a esse disparate perigoso.
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