Adriano Machado/CrusoéO presidente tentou subordinar os militares, mas levou um contra-ataque

Os generais enquadram o capitão

O alto comando das Forças Armadas reage à tentativa de Bolsonaro de usar os quartéis politicamente. A crise, porém, não acabou
02.04.21

Jair Bolsonaro jamais foi considerado um quadro de respeito entre os oficiais de altas patentes das Forças Armadas. No passado, ainda como militar e depois como novato na política, ele cultivava o hábito de panfletar em porta de quartel. Sempre foi malvisto por caracterizar-se como uma espécie de sindicalista afeito a confusões e representante de interesses corporativistas das patentes mais baixas. No Congresso, durante os seus nove mandatos como deputado, a marcha permaneceu a mesma: o capitão reformado se dedicou a causas menores, prestou homenagens a parentes de PMs acusados de envolvimento com as milícias do Rio de Janeiro e cercou-se de personagens como Fabrício Queiroz. No governo, o que houve foi um casamento de conveniência. Muitos militares estrelados, especialmente da reserva, enxergaram em Bolsonaro a oportunidade de ocupar espaços importantes da máquina federal e embarcaram, então, no projeto do político capitão. A aliança funcionou. Empossado, Bolsonaro loteou o primeiro escalão do governo entre generais, colocou militares em conselhos de estatais e garantiu que as três forças tivessem um acesso mais privilegiados ao caixa.

A mentalidade dos velhos tempos de capitão não mudou com a chegada a Brasília. Bem aquinhoados no topo da máquina federal, os militares preferiram fechar os olhos para a postura presidencial, como também para as barbaridades ideológicas do governo, que descambaram na condução trágica da pandemia – com participação efetiva de um fardado da ativa, o general Eduardo Pazuello. A origem no Exército e o sentimento de que, como presidente e comandante-em-chefe das Forças Armadas, poderia gozar do prestígio e do poder que jamais teve enquanto vestia farda, porém, fizeram Bolsonaro achar que poderia manobrar os quartéis, inclusive trazendo-os para o tabuleiro de seu jogo político.

Desde que viu o projeto de reeleição ameaçado pelo agravamento da tragédia do coronavírus e pelo péssimo desempenho da economia, o presidente intensificou suas costumeiras insinuações golpistas e adotou um pronome possessivo ao se referir às forças. O Exército virou “meu Exército”. Acendeu-se, então, um sinal amarelo entre os militares mais graduados da ativa.

Nesta semana, Bolsonaro manteve o método que o caracterizou na vida pública. Só que, dessa vez, com um alto custo para as Forças Armadas. Nos bastidores, o presidente passou a pressionar o general Fernando Azevedo e Silva, até então titular do Ministério da Defesa, por manifestações públicas de apoio ao governo. Ele exigia a cabeça do comandante do Exército, Edson Pujol, crítico das tentativas do presidente de usar as tropas para fins políticos. Descontente com a resistência dos militares em amparar seus devaneios antidemocráticos e a endossar o seu discurso negacionista em meio a escalada de mortes, Bolsonaro acendeu o estopim da maior crise na caserna desde a redemocratização. Para mostrar que manda, exonerou o ministro da Defesa. Na sequência, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica puseram seus cargos à disposição, uma situação inédita. A investida de Bolsonaro teve efeito inverso: uniu o alto comando militar em torno da necessidade de impedir que instituições de estado sejam usadas em favor das conveniências do governo e de seu chefe de ocasião. Bolsonaro acabou, ele próprio, enquadrado em sua iniciativa.

Nem mesmo o plano de tirar Pujol do comando do Exército para colocar um general mais obediente no lugar surtiu tanto efeito. A contragosto do presidente, o alto generalato se moveu para evitar que a troca resultasse no atendimento das vontades de Bolsonaro. Restou a ele nomear para a posição o general Paulo Sérgio Nogueira, que dias antes havia atiçado sua ira ao defender, numa entrevista ainda como responsável pela área de saúde do Exército, a adoção de boas práticas sanitárias e de distanciamento social para conter o avanço da pandemia — o contrário do que o presidente defende.

Embora fosse o terceiro na lista de antiguidade – não é regra, mas reza a tradição que o oficial mais antigo tem preferência para comandar a tropa –, Nogueira foi quase que imposto ao Planalto pelo Alto Comando do Exército. Muito respeitado internamente e com perfil apaziguador, ele jamais foi a primeira, a segunda ou a terceira opção de Bolsonaro, mas era o nome a ser oferecido pela força para serenar os ânimos e debelar o clima de golpe instaurado em Brasília a partir das demissões. Na Marinha e na Aeronáutica, onde o almirante Ilques Barbosa foi substituído por Almir Garnier e o brigadeiro Antônio Moretti Bermudez deu lugar Carlos Baptista Jr., as substituições foram um pouco mais ao gosto do Planalto, mas ainda assim parecem estar longe de dar ao presidente o que ele desejava ter. A crise, no entanto, parece não ter data para acabar já que, nos corredores do Planalto, comenta-se que o presidente pretende monitorar o comportamento dos recém-nomeados de perto.

A nomeação do general Walter Braga Netto, até então chefe da Casa Civil, para o Ministério da Defesa tem por objetivo levar os quartéis na rédea curta. Braga Netto, um dos ministros-generais mais próximos de Bolsonaro, é conhecido por ser um fiel cumpridor de ordens. Se o presidente seguir em seu intento de usar os militares para se fortalecer politicamente, o recado está dado: de novo, haverá reação. A seguir, Crusoé apresenta o quadro geral da crise que ainda não terminou.

Por que Bolsonaro quer politizar as Forças Armadas?

Até então homem de confiança do presidente, o general Fernando Azevedo e Silva foi demitido em cinco minutos por Bolsonaro na tarde de segunda-feira, 29, e substituído no comando do Ministério da Defesa por Braga Netto, que deixou uma posição de destaque dentro do Palácio do Planalto para promover as mudanças desejadas pelo chefe. A escolha de um ministro palaciano muito próximo de Bolsonaro gerou desconforto e consolidou a apreensão quanto à desejada ingerência do presidente nas Forças Armadas. A primeira atitude de Braga Netto amplificou a tensão: ao saber que os três comandantes militares colocariam os cargos à disposição, o general se antecipou e os demitiu a mando de Bolsonaro, sem sequer ter escolhido os sucessores. A intenção de Bolsonaro de politizar as Forças Armadas ficou explícita diante do conteúdo de notas divulgadas após o episódio por Fernando Azevedo e Silva e pelo comandante da Aeronáutica, Antônio Carlos Bermudez.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéAzevedo saiu dizendo que manteve as Forças Armadas como “instituições de estado”
No comunicado, Azevedo reafirmou lealdade ao presidente Bolsonaro, mas fez questão de dizer que, no cargo, atuou para preservar “as Forças Armadas como instituições de estado”. O recado estava dado: a demissão havia acontecido porque o presidente queria usá-las a serviço do governo. Bermudez seguiu a mesma linha, também em nota pública. Com a repercussão negativa da intervenção no Ministério da Defesa, o presidente disse que joga “dentro dos limites da Constituição”, mas não refutou as especulações de que estaria nutrindo desejos golpistas. Nesta quinta-feira, 1º de abril, ele negou que esteja tentando politizar as Forças Armadas.

Especialistas ouvidos por Crusoé levantam a hipótese de que Bolsonaro esteja querendo politizar as Forças Armadas para, futuramente, caso precise – na iminência de um impeachment, por exemplo –, ele  tenha condições de ao menos tentar usar a tropa em seu favor. O presidente também tem defendido, nos bastidores, uma intervenção do Exército sobre as polícias militares dos estados que, por determinação de governadores, atuam contra cidadãos que descumprem as medidas restritivas contra a Covid-19. Bolsonaro comparou as regras sanitárias baixadas pelos governadores a um “estado de sítio”. Nas últimas semanas, ele vinha cobrando do general Edson Pujol, então comandante do Exército, providências contra as ações de isolamento social. O comandante do Exército não cedeu, até porque concordava com a maior parte das medidas.

As Forças Armadas embarcariam em uma aventura golpista?

Para além do trauma causado na sociedade brasileira pela violência imposta pela ditadura em 21 anos de regime, militares da reserva afirmam que a própria cultura da geração que hoje comanda as Forças Armadas afasta qualquer chance de uma nova aventura golpista no país – a maioria dos generais, almirantes e brigadeiros que ocupa postos de comando ingressou nas instituições no fim da década de 1970, quando o governo militar já estava desgastado e o movimento pela redemocratização crescia no país.

“Naquela época era outra conjuntura internacional, havia uma ameaça de expansão comunista na Guerra Fria, teorias de luta armada para tomada de poder. Os desafios hoje são outros. As Forças Armadas são defensoras da pátria e da Constituição. Suscitar uma nova intervenção militar com Bolsonaro é uma campanha de fanatismo desconectada da realidade. Não tem a mínima chance de acontecer“, afirma o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, que foi demitido da Secretaria de Governo no sexto mês de governo por divergências com outros integrantes do gabinete de Bolsonaro.

Waldemir Barreto/Agência SenadoWaldemir Barreto/Agência SenadoNo ano passado, Pujol chegou a verbalizar a resistência à interferência política
“Muitos dos atuais integrantes do Alto Comando foram meus cadetes, quando eu era instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman. Conheço bem esses generais, sei como foram formados, e tenho certeza de que as investidas do presidente não terão nenhum resultado”, faz coro o general da reserva Paulo Chagas, ex-comandante do Regimento Dragões da Independência, que serve à Presidência da República. Na mesma toada, o general Francisco Mamede de Brito, que foi instrutor da Aman ao lado do ex-ministro Fernando Azevedo e do novo comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira, diz que a atual geração militar é “descontaminada de qualquer resquício de pensamento autoritário ou intervencionista”.

A missão de Braga Netto, o novo ministro da Defesa

Da criação do Ministério da Defesa, em 1999, até 2018, apenas civis haviam ocupado o cargo que unificou o comando estratégico das Forças Armadas. Foram nove ministros sem vinculação militar até o então presidente Michel Temer escolher o general Joaquim Silva e Luna, recém-escolhido no cargo de presidente da Petrobras, para comandar a pasta. Bolsonaro seguiu o caminho do antecessor e manteve a militarização no comando da Defesa com a nomeação do general Fernando Azevedo e Silva, demitido nesta semana por se recusar a fazer o jogo político do presidente.

Isac Nóbrega/PRIsac Nóbrega/PRBraga Netto: fama de mandão de cima para baixo e de obediente de baixo para cima
A expectativa é que a chegada de Braga Netto ao ministério provoque um alinhamento retórico do Ministério da Defesa com o Planalto. Ele é tido como o militar mais político da Esplanada, ao lado do general Luiz Eduardo Ramos, que assumiu a Casa Civil. Isso não significa, necessariamente, que a troca vá resultar em ações práticas que coloquem em risco o regime democrático. “O próprio general Braga Netto, que foi mandado como mensageiro do presidente ao Ministério da Defesa, tem uma formação que não permite uma atitude contrária à Constituição”, avalia o general da reserva Paulo Chagas.

Ainda que não implique risco automático à estabilidade institucional, o papel que Braga Netto se dispôs a desempenhar compromete a imagem das Forças Armadas e deve colocá-lo na alça de mira dos oficiais-generais da ativa refratários a ordens subordinadas a projetos políticos personalistas. “Acho que Jair Bolsonaro criou uma crise menor para desviar o foco da crise maior. No entanto, empurra as Forças Armadas para fora da zona de conforto. Braga Netto vai enfrentar a rejeição delas, e pode não sobreviver. Acho que foi um tiro no pé. Será uma crise duradoura”, acredita o general da reserva Maynard Santa Rosa, que se demitiu da Secretaria de Assuntos Estratégicos com menos de um ano de governo, em meio ao aparelhamento ideológico da máquina.

O que esperar dos novos comandantes

A traumática mudança feita por Bolsonaro na cúpula militar desencadeou enorme apreensão sobre os nomes que seriam escolhidos como substitutos. Mas a escolha do general Paulo Sérgio Nogueira, o terceiro mais antigo entre os generais quatro estrelas, foi vista como um recuo do presidente diante da repercussão negativa provocada pelas demissões. Cearense, formado na turma de 1980 da Aman, o general que comandará a maior das três forças – o Exército reúne 60% dos cerca de 380 mil militares do país – tem 59 anos de idade e é descrito por colegas como um militar com jogo de cintura e que aprecia o diálogo. Se não irá endossar eventuais acessos autoritários de Bolsonaro, Nogueira também não deverá fazer manifestações públicas ressaltando o papel do Exército como instituição de estado para fazer frente a ameaças do presidente, como fez seu antecessor – no ano passado, Pujol declarou que a corporação “não tem partido” e que militares não querem “fazer parte da política”.

Marcos Corrêa/PRMarcos Corrêa/PRBolsonaro posa com os novos comandantes e o novo ministro
O mesmo se espera do novo comandante da Marinha, o almirante de esquadra Almir Garnier Santos, de 60 anos. Nascido no Rio de Janeiro e segundo mais antigo da força, o almirante chegou ao topo da hierarquia na Marinha em 2018, depois de ter assessorado ministros da Defesa no governo do PT, como Celso Amorim, Jaques Wagner e Aldo Rebelo, além de Raul Jungmann na gestão de Michel Temer. No atual governo, Garnier era o número dois do ministério.

O nome realmente próximo do bolsonarismo é o do novo comandante da Aeronáutica, o brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior, que compartilha mensagens difundidas pela militância bolsonarista nas redes sociais. Primeiro na ordem de antiguidade, Baptista Jr. assume um cargo que já foi ocupado pelo pai dele, entre 1999 e 2003, no governo Fernando Henrique Cardoso. Com os holofotes voltados para a nova cúpula militar, generais da reserva ouvidos por Crusoé acreditam, no entanto, que será improvável qualquer manifestação de apoio de um dos novos comandantes ao governo. O papel político cobrado por Bolsonaro, ressaltam, deve ficar concentrado na figura do ministro Braga Netto, que se transferiu para a reserva no ano passado.

O papel das Forças Armadas

Constituídas pelo Exército, pela Marinha e pela Aeronáutica, as Forças Armadas atuam desde o século XVII na defesa da soberania territorial, como ocorreu na Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870, mas têm um vasto histórico de envolvimento na política nacional, como na Proclamação da República, em 1889, no início e no fim da ditadura de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945, e no golpe de 1964. Com a redemocratização do país, em 1985, e o Brasil fora dos conflitos bélicos contemporâneos, as Forças Armadas passaram a se voltar para atividades como a proteção das fronteiras, a execução de obras de infraestrutura em áreas longínquas e cumprimento de missões humanitárias, no Brasil e no exterior — entre 2004 e 2017, por exemplo, o Exército integrou as forças de paz enviadas pela ONU ao Haiti.

Agora na pandemia, por exemplo, o Exército tem participado da instalação de hospitais de campanha e a Força Aérea tem atuado no transporte de pacientes e de suprimentos. “No Brasil, os militares são como o Bombril. Eles vivem tapando os buracos das coisas que não funcionam no país”, definiu o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, em entrevista a Crusoé em outubro do ano passado. Jungmann é um dos defensores da aprovação de um plano nacional de defesa para dar mais sentido à atuação do Exército, da Marinha e da Aeronática, mas a proposta ainda não ecoou no Congresso.

Divulgação/AeronáuticaDivulgação/AeronáuticaAvião C-130 da FAB com cilindros de oxigênio: missão de socorro na pandemia
Pela Constituição de 1988, as Forças Armadas foram definidas como “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República”, com três objetivos específicos: a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais e a garantia da lei e da ordem. É exatamente essa última missão que tem fomentado o apelo da militância bolsonarista para que o presidente invoque o artigo 142 da Carta Magna para promover uma intervenção militar. Uma ideia que já foi defendida pelo próprio Bolsonaro.

“Nós queremos fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. Todo mundo quer fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil”, disse o presidente na reunião ministerial de abril do ano passado, quando ele já criticava as medidas restritivas adotadas por governadores e prefeitos para combater a pandemia e o respaldo jurídico que o Supremo havia dado a elas.

Em junho do ano passado, o ministro Luiz Fux, hoje presidente da corte, assinou uma liminar delimitando a interpretação do artigo. No despacho, ele diz que o presidente da República não pode autorizar o emprego das Forças Armadas contra os outros poderes. Bolsonaro, ao que tudo indica, ainda não se deu por vencido – e acredita que pode manejar os quartéis da maneira que lhe convém. Felizmente, até aqui, tem prevalecido o entendimento de que as três forças não podem servir aos chefes políticos de ocasião. Que assim seja.

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