Bolsonaro com Vladimir Putin: ele quer uma vacina para chamar de sua

Combinando com os russos

O governo e o Congresso se movem para atropelar a Anvisa e abrir caminho para a utilização da vacina Sputnik V no país antes mesmo de a agência avaliar a segurança e a eficácia da fórmula
09.04.21

A Câmara aprovou nesta terça-feira, 6, um projeto de lei que flexibiliza a compra de vacinas pela iniciativa privada. Se o texto for aprovado também pelo Senado, sem mudanças, as empresas não precisarão mais esperar o fim da imunização dos grupos prioritários pelo SUS para comprar e aplicar vacinas de imediato em seus funcionários.

Por trás do projeto, que passou com a bênção do presidente da Câmara, Arthur Lira, há o interesse do Congresso em sagrar-se vitorioso numa queda de braço que se arrasta desde o final do ano passado com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. O objetivo principal dos parlamentares sempre foi o de relaxar as exigências necessárias à aprovação do uso emergencial das vacinas, e, com isso, abrir caminho para a Sputnik V no Brasil. Só que o texto aprovado pela Câmara, que vale exclusivamente para empresas privadas, é ainda mais permissivo: assegura a compra e a utilização dos imunizantes mesmo sem a aprovação da Anvisa, responsável por avaliar a segurança e eficácia das fórmulas. Bastará, de acordo com o projeto, que a vacina tenha recebido o aval de “autoridades sanitárias estrangeiras reconhecidas e certificadas pela Organização Mundial da Saúde, a OMS”.

É justamente nesse trecho do texto que a Sputnik V se enquadra, já que foi chancelada na Rússia e na Argentina. É evidente que, em um contexto de vacinação lenta em todo o país e de falta de insumos suficientes para produção de imunizantes contra o coronavírus em larga escala e sem interrupção, quanto mais doses estiverem disponíveis para a população, melhor. Mas não deixam de chamar atenção as articulações políticas em favor da vacina russa.

Luis Macedo/Câmara dos DeputadosLuis Macedo/Câmara dos DeputadosArthur Lira: movimento para permitir que empresas vacinem empregados sem entrar na fila do SUS
Representantes da Sputnik V exercem um forte lobby sobre o Congresso desde meados de 2020. Nos últimos dias, o time que defende o imunizante ganhou um reforço de peso. Na terça, o presidente Jair Bolsonaro conversou por telefone com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e tratou da compra e da produção da Sputnik V no Brasil. Bolsonaro, até há pouco crítico das vacinas, tem se mostrado obcecado pela ideia de ter uma vacina para chamar de sua, de preferência que seja mais eficaz que “a vacina chinesa de João Doria”.

Testes preliminares feitos com a vacina russa apontam números animadores acerca de sua eficácia. Há, porém, muitos questionamentos sobre a qualidade e a correção dessas pesquisas. A agência europeia de medicamentos, por exemplo, deve abrir nos próximos dias uma apuração para averiguar se houve desvios éticos na condução do trabalho. A Sputnik não tem aval, até o momento, de nenhum órgão regulador de primeira linha no Ocidente. E tudo indica que não terá tão cedo. Nos Estados Unidos, por razões geopolíticas, a vacina sofre grande resistência, juntamente com as vacinas chinesas – as autoridades americanas não se mostram interessadas em fazer concessões a fórmulas desenvolvidas por países que tentam fazer frente ao poderio americano na cena global. Também não precisam, uma vez que estão inundados pelas vacinas da Pfizer e da Moderna, que financiaram com bilhões de dólares, além das milhões de doses do imunizante da AstraZeneca.

Um lote experimental da Sputnik V produzido integralmente em solo brasileiro foi apresentado pela União Química no último dia 30. Ocorre que a vacina também não tem autorização para uso no Brasil porque o pedido apresentado, segundo a Anvisa, tem uma série de inconsistências – 18% dos documentos necessários não foram entregues e 24% dos relatórios apresentados carecem de informações importantes para o andamento do processo de aprovação.

Divulgação/AnvisaDivulgação/AnvisaA Anvisa vai inspecionar as linhas de produção da Sputnik na Rússia
Na disputa com o Congresso, mas pressionada agora por Bolsonaro, a agência brasileira enviará uma missão à Rússia nas próximas semanas a fim de realizar inspeções nas linhas de produção da vacina. Se o projeto de Arthur Lira for aprovado também pelo Senado, a agência deixa de ser protagonista para virar mera espectadora do processo. Era o que parlamentares queriam desde que a disputa passou a ser travada nos bastidores. “É mais uma tentativa de aprovar vacinas como a da Rússia e a da Índia a qualquer custo. Estão passando por cima da Anvisa novamente”, queixa-se um especialista da Anvisa, ouvido sob reserva.

Um grupo significativo de governadores também está alinhado em favor da vacina russa. Ao todo, doze estados já tentam desde o ano passado viabilizar a importação de 37 milhões de doses da Sputnik vindas diretamente da Rússia, mas ainda não conseguiram apresentar à autoridade sanitária brasileira documentos que atestem a segurança e a eficácia do imunizante. Há, entre os governadores, o temor de que o projeto de Lira, ao deixar a Anvisa de fora do processo, abra caminho para que as doses russas negociadas por eles acabem sendo adquiridas pela iniciativa privada – estaria justamente aí, portanto, o pulo do gato da proposta do presidente da Câmara.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO