Combinando com os russos
A Câmara aprovou nesta terça-feira, 6, um projeto de lei que flexibiliza a compra de vacinas pela iniciativa privada. Se o texto for aprovado também pelo Senado, sem mudanças, as empresas não precisarão mais esperar o fim da imunização dos grupos prioritários pelo SUS para comprar e aplicar vacinas de imediato em seus funcionários.
Por trás do projeto, que passou com a bênção do presidente da Câmara, Arthur Lira, há o interesse do Congresso em sagrar-se vitorioso numa queda de braço que se arrasta desde o final do ano passado com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. O objetivo principal dos parlamentares sempre foi o de relaxar as exigências necessárias à aprovação do uso emergencial das vacinas, e, com isso, abrir caminho para a Sputnik V no Brasil. Só que o texto aprovado pela Câmara, que vale exclusivamente para empresas privadas, é ainda mais permissivo: assegura a compra e a utilização dos imunizantes mesmo sem a aprovação da Anvisa, responsável por avaliar a segurança e eficácia das fórmulas. Bastará, de acordo com o projeto, que a vacina tenha recebido o aval de “autoridades sanitárias estrangeiras reconhecidas e certificadas pela Organização Mundial da Saúde, a OMS”.
É justamente nesse trecho do texto que a Sputnik V se enquadra, já que foi chancelada na Rússia e na Argentina. É evidente que, em um contexto de vacinação lenta em todo o país e de falta de insumos suficientes para produção de imunizantes contra o coronavírus em larga escala e sem interrupção, quanto mais doses estiverem disponíveis para a população, melhor. Mas não deixam de chamar atenção as articulações políticas em favor da vacina russa.
Testes preliminares feitos com a vacina russa apontam números animadores acerca de sua eficácia. Há, porém, muitos questionamentos sobre a qualidade e a correção dessas pesquisas. A agência europeia de medicamentos, por exemplo, deve abrir nos próximos dias uma apuração para averiguar se houve desvios éticos na condução do trabalho. A Sputnik não tem aval, até o momento, de nenhum órgão regulador de primeira linha no Ocidente. E tudo indica que não terá tão cedo. Nos Estados Unidos, por razões geopolíticas, a vacina sofre grande resistência, juntamente com as vacinas chinesas – as autoridades americanas não se mostram interessadas em fazer concessões a fórmulas desenvolvidas por países que tentam fazer frente ao poderio americano na cena global. Também não precisam, uma vez que estão inundados pelas vacinas da Pfizer e da Moderna, que financiaram com bilhões de dólares, além das milhões de doses do imunizante da AstraZeneca.
Um lote experimental da Sputnik V produzido integralmente em solo brasileiro foi apresentado pela União Química no último dia 30. Ocorre que a vacina também não tem autorização para uso no Brasil porque o pedido apresentado, segundo a Anvisa, tem uma série de inconsistências – 18% dos documentos necessários não foram entregues e 24% dos relatórios apresentados carecem de informações importantes para o andamento do processo de aprovação.
Um grupo significativo de governadores também está alinhado em favor da vacina russa. Ao todo, doze estados já tentam desde o ano passado viabilizar a importação de 37 milhões de doses da Sputnik vindas diretamente da Rússia, mas ainda não conseguiram apresentar à autoridade sanitária brasileira documentos que atestem a segurança e a eficácia do imunizante. Há, entre os governadores, o temor de que o projeto de Lira, ao deixar a Anvisa de fora do processo, abra caminho para que as doses russas negociadas por eles acabem sendo adquiridas pela iniciativa privada – estaria justamente aí, portanto, o pulo do gato da proposta do presidente da Câmara.
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