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O homem que desafiou Gilmar

Quem é o promotor de Mato Grosso que comprou uma briga monumental com Gilmar Mendes e, agora, enfrenta a sua ira. Depoimentos prestados em processo apontam que o ministro tenta usar contatos políticos para puni-lo
09.04.21

Considerado por colegas um profissional “extremamente diligente”, “respeitado” e “muito técnico”, o promotor de Justiça mato-grossense Daniel Balan Zappia enfrenta há três anos um processo disciplinar com ares kafkianos. Ele virou alvo de um procedimento administrativo no Conselho Nacional do Ministério Público por investigar o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, e seus familiares. O questionamento contra o trabalho do promotor se arrasta desde 2018 e, diante das implicações políticas do caso, o CNMP decidiu na semana passada prorrogar por mais 90 dias o prazo para dar um veredicto. Zappia é acusado de “abuso processual” em apurações sobre o uso irregular de agrotóxicos e transgênicos em uma propriedade rural de Gilmar Mendes e seus familiares.

As terras estão à beira das nascentes do rio Paraguai, uma área de extrema relevância ambiental – são as águas do rio que dão origem ao Pantanal brasileiro, patrimônio natural da humanidade. Depoimentos prestados por testemunhas ao longo da sindicância e obtidos por Crusoé revelam supostas tentativas de interferência política do ministro para brecar as investigações a respeito do caso. Inconformado com as fiscalizações nas propriedades, realizadas a partir de 2015, Gilmar Mendes teria ligado para integrantes da cúpula do governo mato-grossense para questionar as ações ambientais, pressionado autoridades pela regularização de terras e acionado informalmente a Corregedoria do MP do estado contra o promotor que ousou investigá-lo.

De acordo com os relatos, Gilmar chamou Daniel Balan Zappia de “louco de gaiola”. Testemunhas citaram, no processo, até rumores de conversas com magistrados da Justiça local para pedir providências. Integrantes do Ministério Público forneceram à Corregedoria Nacional do Ministério Público (CNMP) detalhes sobre a “pressão” exercida pelo ministro e revelaram estranhamento com mudanças na legislação promovidas pelo governo do estado e que podem ter beneficiado Gilmar.

Nos bastidores, as queixas de Gilmar contra o promotor começaram há pouco mais de cinco anos, mas Daniel Balan Zappia só passou a ter seu trabalho formalmente questionado em 2018, quando o ministro formalizou uma reclamação disciplinar. No ano seguinte, foi aberta uma sindicância, posteriormente arquivada pela Corregedoria Nacional do Ministério Público. O ministro recorreu. O conselheiro Otávio Luiz Rodrigues Júnior, indicado pela Câmara dos Deputados para o CNMP, votou a favor da instauração de processo e foi seguido pela maioria do colegiado. Com isso, em maio do ano passado, o desafeto de Gilmar passou a ser formalmente investigado pelo órgão.

Fellipe Sampaio/SCO/STFFellipe Sampaio/SCO/STFGilmar: ligações para políticos e integrantes do MP
A formalização da reclamação de Gilmar se deu após Zappia ajuizar cinco ações civis públicas contra o ministro do Supremo e seus dois irmãos, Francisco Ferreira Mendes Júnior e Maria da Conceição Mendes França. O ministro alega, na peça, que o promotor teria se valido de “suas prerrogativas funcionais como instrumento de satisfação de convicções pessoais e como meio de minar a credibilidade do reclamante como ministro do Supremo Tribunal Federal”. Nas ações apresentadas à Justiça de Mato Grosso contra o clã Mendes, o promotor cobrou o cumprimento da legislação quanto ao manuseio e aplicação de agrotóxicos e fertilizantes químicos, o ajuste da atividade econômica desenvolvida na propriedade da família, com a suspensão da utilização de defensivos agrícolas e do plantio de lavouras transgênicas, e a apresentação de licença de operação, além do pagamento de uma indenização por “danos morais ambientais” no valor de 4,7 milhões de reais.

Uma das testemunhas de defesa de Daniel Balan Zappia no processo disciplinar é a promotora de Justiça Ana Luiza Ávila Peterlini. Entre 2015 e 2016, ela foi secretária de Meio Ambiente do Governo do Mato Grosso, na gestão do então governador Pedro Taques. À época, a Promotoria de Diamantino, município natal de Gilmar e onde Zappia atua, pediu que a Secretaria de Meio Ambiente realizasse operações de fiscalização na região das nascentes do rio Paraguai e exigisse o cumprimento de um decreto estadual que proibia o uso de defensivos agrícolas dentro de unidades de conservação. “Nesse meio tempo, recebi uma ligação do governador dizendo que o ministro Gilmar Mendes havia ligado para ele para perguntar sobre essas fiscalizações. Expliquei que havia um decreto que proibia o uso de agrotóxico nas unidades de conservação e que havia requisição do Ministério Público”, contou Ana Luiza em depoimento ao CNMP.

A promotora relatou que, além da ligação de Taques, recebeu ainda um telefonema do então vice-governador, Carlos Fávaro, hoje senador, para questioná-la sobre a operação. Segundo o relato de Peterlini, o vice-governador perguntou “se não tinha como parar a fiscalização, porque o pessoal estava muito alvoroçado”. “Mas acabei não tomando nenhuma atitude, até porque não ia parar um processo de fiscalização por conta de pedidos de produtores”, explicou. A promotora revelou que também foi procurada diretamente por Gilmar Mendes. Segundo ela, o ministro estava interessado no processo de legalização de uma área rural: “Recebi uma ligação dele, solicitando informações sobre uma propriedade, não sei se é a mesma, mas era em Diamantino também. Era sobre a regularização ambiental, e posteriormente ele solicitou que eu recebesse o advogado dele”. Em março de 2016, Ana Luiza Peterlini deixou a Secretaria de Meio Ambiente em uma circunstância que, coincidentemente, também envolveu Gilmar.

Naquele ano, o ministro foi relator, no Supremo, de uma ação ajuizada contra a nomeação de Wellington César Lima e Silva, procurador do Ministério Público da Bahia, para o cargo de ministro da Justiça de Dilma Rousseff. Por maioria, seguindo o voto de Gilmar, a corte entendeu que membros do MP não podem ocupar cargos públicos, a não ser como professores. Com isso, promotores e procuradores com funções em governos estaduais, como era o caso de Ana Luiza Peterlini, tiveram que ser exonerados. Em Mato Grosso, quem substituiu a promotora na secretaria foi justamente o vice-governador e hoje senador Carlos Fávaro – o mesmo que havia alertado a antecessora sobre a necessidade de “parar a fiscalização”. Um mês depois da nomeação de Fávaro, que também é produtor rural, o governo flexibilizou o decreto que restringia o uso de agrotóxicos. A medida liberou o uso de defensivos químicos na área de proteção ambiental das nascentes do rio Paraguai, onde está a propriedade do clã Mendes. O novo decreto estabelecia, de maneira genérica, que deveriam ser adotadas “práticas que garantam o uso racional dos recursos naturais e a consoante diminuição na utilização dos agrotóxicos”. A proibição, portanto, tinha caído.

Parte da fazenda da família Mendes: autuação por uso de defensivos agrícolas
Em uma das ações ajuizadas contra a família de Gilmar, o promotor Zappia afirmou que, mesmo diante da mudança na legislação, não se mostrava “compatível com o regime de proteção de uma unidade de conservação a utilização massiva de defensivos agrícolas, associada a um sistema de diagnóstico de intoxicação ineficaz”. E ainda: “a possível contaminação por defensivos e insumos agrícolas na Fazenda São Cristóvão (nome da propriedade de Gilmar Mendes e seus irmãos) repercutirá por toda a planície pantaneira, atingindo a flora e a fauna nativas que nela se encontram abrigadas, afora a população que faz uso de seus recursos hídricos”.

Um estudo motivou o promotor e os colegas que atuam na área do meio ambiente de Mato Grosso a ingressar com as ações. Realizado na cidade de Lucas do Rio Verde e concluído em 2014, o levantamento havia revelado a contaminação de poços artesianos, amostras de água da chuva e até no sangue, na urina e no leite materno de pessoas da região, além de reiterados casos de fetos com má formação e aumento de registros de câncer. As ações civis ajuizadas contra Gilmar e os irmãos dele ainda tramitam no Tribunal de Justiça de Mato Grosso. O TJ negou todos os pedidos de liminares feitos no processo. “Precauções genéricas no manuseio e aplicação de agrotóxicos, desprovido de provas, certamente gerarão sensível instabilidade nas atividades rurais da região”, entendeu o desembargador Márcio Aparecido Guedes.

O procurador de Justiça Luiz Alberto Esteves Scaloppe, que atua na Promotoria Especializada em Defesa Ambiental e Ordem Urbanística de Mato Grosso, também testemunhou no processo em defesa de Daniel Balan Zappia. “Ouvi comentários de que o ministro estaria um pouco chateado, achando que (o promotor) estaria perseguindo sua família. Mas (Daniel) estava cumprindo a missão dele. É um dos melhores promotores do estado”, afirmou. Um dos questionamentos de Gilmar Mendes quanto à atuação do promotor foi o ajuizamento de cinco ações civis públicas relativas à mesma propriedade rural. Para o ministro, o excesso caracterizaria o “abuso processual” e a “perseguição” do promotor. Integrantes do MP afirmaram, no entanto, que é praxe na área ambiental o ajuizamento de diferentes procedimentos para tratar de questões distintas, como danos causados por agrotóxicos, por incêndios ou para definir uma reserva legal, por exemplo.

“Há uma pergunta no ar: qual é o conteúdo dessas ações? São verdadeiras ou não são? Eu acredito que são, e é isso que me interessa, como um integrante com mais de 40 anos de Ministério Público”, declarou Scaloppe em depoimento ao CNMP. “Eu entendo o ministro Gilmar, as ações eram contra ele. Acho legítimo que o ministro atue, sei que ele telefonou para o nosso corregedor, Flávio Fachone, ele se movimentou conversando com pessoas, não sei se conversou com o tribunal, as pessoas dizem, ele tem acesso. É legítimo ele fazer isso, mas ele é um ministro, a pressão é muito maior. Eu mesmo tenho grande respeito (por Gilmar Mendes), mas acho que isso foi a um nível que não precisava, de emoções”, prosseguiu o procurador.

DivulgaçãoDivulgaçãoO promotor também investigou a compra da faculdade da família do ministro pelo governo do estado
Citado no depoimento, Flávio Fachone atuou na Corregedoria do Ministério Público mato-grossense entre e 2015 e 2018. Ao CNMP, ele afirmou que Daniel Balan Zappia “sempre foi muito respeitado porque é muito técnico”. Fachone relatou que recebeu uma ligação de Gilmar Mendes antes que o ministro formalizasse a reclamação disciplinar contra Daniel: “Ele (Gilmar) falou: ‘o senhor está com um louco de gaiola lá em Diamantino. Ele está usando meu nome, dando entrevista, entrando com ações infundadas, quero que o senhor tome providências contra ele’”. O procurador contou ainda que aguardou o envio de um documento formal do ministro do STF, mas a reclamação oficial nunca chegou. “Não veio nenhum documento e eu não tomei nenhuma providência.”

A reclamação disciplinar apresentada por Gilmar Mendes contra Daniel Balan Zappia incluiu ainda outro questionamento: a tentativa do promotor de reabrir investigações relacionadas à compra, pelo governo do estado de Mato Grosso, de uma faculdade de propriedade da família de Gilmar. A União de Ensino Superior de Diamantino, a Uned, foi comprada pelo estado em 2013, durante a gestão do governador Silval Barbosa, por 7,7 milhões de reais. O MP queria apurar se o ministro teve benefícios financeiros com a transação. Em fevereiro deste ano, em uma sessão sigilosa, o TJ de Mato Grosso suspendeu as apurações relacionadas ao caso.

Apesar de haver no processo testemunhos de dez integrantes do Ministério Público em favor de Daniel Balan Zappia, um aspecto preocupa a defesa do promotor: o CNMP está com a composição desfalcada e, hoje, quatro das 14 cadeiras do conselho estão vagas. Três desses assentos são justamente os de indicados pelos MPs estaduais, que poderiam se alinhar à defesa. “Sob a ótica da defesa técnica, não esperamos outro resultado que não seja a absolvição e o arquivamento do processo disciplinar. Acho que, ao fim do procedimento, ele mereceria até uma nota de louvor pela coragem com que cumpriu seus deveres funcionais”, disse o advogado José Fábio Marques, que representa o promotor. “Há três anos, ele está com essa espada apontada na cabeça”, emenda.

Daniel Balan Zappia não quis dar entrevista. Crusoé também procurou o escritório que representou Gilmar Mendes nas ações e o próprio gabinete do ministro, mas não houve resposta. Se condenado pelo CNMP, o promotor que despertou a ira de Gilmar poderá ser punido com pena de advertência, censura ou suspensão de até 45 dias. Mas, no Ministério Público, os efeitos do processo disciplinar preocupam tanto quanto o desfecho do caso: a investida de Gilmar é vista como uma tentativa de intimidação capaz de minar outras apurações contra poderosos.

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