MarioSabino

O caviar podre da esquerda

16.04.21

A expressão “esquerda caviar” é de origem francesa. Refere-se àquele pessoal que, enquanto se dedica a salvar o proletariado da exploração da burguesia e redimir a humanidade dela própria em teses universitárias, artigos para jornais e discussões em mesas de cafés de Saint-Germain-des-Prés, o bairro de Paris que combina boutiques elegantes e revolução, goza dos privilégios dos mesmos burgueses que condena e diz querer derrubar. No Brasil, a expressão encontrou a sua versão no termo “esquerda ipanemense”, embora Saint-Germain-des-Prés não tenha praia e maiôs exiguos e Ipanema não tenha rede de esgoto decente e o discreto charme de paletós com falsos remendos nos cotovelos. Mesmo as melhores traduções são aproximativas.

Um expoente da esquerda caviar parisiense, Olivier Duhamel, está no centro de um escândalo neste momento. Ele é acusado de ter abusado sexualmente do seu enteado. O menino contava, na época, 13, 14 anos. O abusador o obrigava a fazer sexo oral, num crime que também é de incesto. Olivier Duhamel, hoje com 70 anos, confessou o abuso nesta semana a policiais especializados em proteger menores. Mas nada acontecerá com ele, porque o seu crime prescreveu. O inquérito foi aberto para tentar identificar outras potenciais vítimas e como resposta ao clamor nacional suscitado pela divulgação da história.

Olivier Duhamel teve a sua monstruosidade exposta porque a irmã gêmea da vítima publicou, em janeiro último, um livro intitulado La Familia Grande, no qual revela o abuso do padrasto. Interrompi outras leituras para ler o livro de Camille Kouchner, recém-entregue pela Amazon. O seu relato é extraordinário. “La Familia Grande” é como Olivier Duhamel chamava, em espanhol, o círculo de parentes e amigos que ele costumava reunir na sua grande casa em Sanary, no Sul da França. A referência espanhola era fruto da reverência ao Chile de Salvador Allende, país que lhe proporcionou mais dois filhos adotivos.

Usei o verbo “revelar”, mas Camille diz que não revelou nada. O abuso contra o seu irmão gêmeo era fato que concentricamente passou a ser conhecido de todos os que orbitavam ao redor do seu padrasto. A regra, contudo, era a da omertà. Olivier Duhamel é filho de ex-ministro, fez carreira estelar de professor a presidente do Instituto de Estudos Políticos de Paris (a famosa escola Sciences Po), foi eurodeputado do Partido Socialista e conselheiro dos presidentes François Hollande e Emmanuel Macron, é figura de primeira grandeza no mundo intelectual parisiense e personalidade cultural e política cuja fama foi amplificada pela rádio e televisão francesas. Até o escândalo eclodir, comandava um programa de boa audiência. Grande demais, com conexões demais, para ser denunciado. A esquerda caviar não protegeu apenas Olivier Duhamel, mas si própria. Como a máfia.

A mãe de Camille Kouchner era igualmente expoente da esquerda caviar: Évelyne Pisier, professora de Direito, ex-amante de Fidel Castro. Ela teve três filhos com Bernard Kouchner, criador da organização Médicos Sem Fronteiras, a quem conheceu justamente em Cuba, durante a viagem de praxe que estudantes esquerdistas faziam à ilha. Num encontro com o ditador organizado por Bernard Kouchner, Fidel Castro bateu o olho em Evelyne Pisier, francesinha loira de olhos azuis, gostou do que viu e a mandou buscar no alojamento destinado aos estudantes franceses. O relacionamento se manteve por bom tempo. Bernard Kouchner, que já gostava de Evelyne, aparentemente achou que se tratava de um serviço à causa revolucionária. Ambos viriam a se casar não demorou muito.

Évelyne Pisier era feminista, não gostava de usar calcinhas, hábito herdado da sua mãe, mulher liberada avant la lettre, e não deixava que as suas filhas usassem. Sua irmã, a atriz Marie-France Pisier, uma das mais lindas do cinema francês, descoberta por François Truffaut, assimilou lições maternas de maneira mais seletiva. A mãe suicidou-se; o pai, o “fascista” de quem a mãe se separara fazia tempo, também. Desunidos na política e nos hábitos e costumes, uniram-se na autodestruição. Casada com Olivier Duhamel, Évelyne Pisier encontrou o parceiro ideal em matéria de comportamento. A liberdade de discussão em casa era total, as crianças viam-se completamente integradas ao mundo adulto. No sexo, inclusive. As conversas não tinham freios, assim como o estímulo à exploração da sexualidade. Nudez de adultos e crianças não era um problema em “La Grande Familia”. Nem adultos que beijavam crianças na boca, carícias proibidas debaixo da mesa, jovens sendo oferecidos a mulheres mais velhas, homens que paqueravam abertamente as babás dos seus filhos, jogos de mímica nos quais meninos e meninas simulavam o ato sexual. Era proibido proibir.

Foi nesse ambiente permissivo que ocorreu o abuso. Que aconteceu o incesto. O irmão de Camille Kouchner contou-lhe depois da primeira vez:

“Ele me levou no fim de semana. Você se lembra? Lá, no quarto, ele veio até a minha cama e me disse: ‘Eu vou te mostrar. Você vai ver, todo mundo faz isso’. Ele me acariciou e depois você sabe’…”

Camille Kouchner narra vividamente:

“Eu conheço o meu irmão, ele está assustado. Mais do que irritado de me dizer. Ele observa o meu olhar, tenta saber: ‘Você acha que é errado?’ Bom, não, não acho. Já que é ele, não deve ser nada. Ele nos ensina, só isso. Somos liberados!”

“Meu irmão me explica: ‘Ele disse que a mamãe está cansada demais, que contaremos a ela depois. Os pais dela se mataram. Não é preciso mais uma coisa’. Quanto a isso, eu certamente concordava. Ele me disse também: ‘Respeite esse segredo. Prometi a ele, agora você prometa. Se você falar, eu morro. Tenho muita vergonha. Me ajude a dizer não a ele, por favor.”

O abuso incestuoso durou dois ou três anos, conta Camille Kouchner. E o padrasto, para garantir o silêncio da pequena testemunha involuntária, entrava no quarto dela, depois de mais um crime cometido. Sentava-se na cama de Camille e simplesmente podia dizer: “Você pôs calcinha? Você sabe que não quero você ponha calcinha para dormir. É sujo. É preciso respirar”. Vez por outra, sem usar de entrelinhas, afirmava: “Você sabe, para sua mãe, cada dia é uma vitória. Cada dia é um dia ganho. Deixem que eu conto. Chegaremos lá”.

Camille Kouchner relata que, certa vez, um rapaz deitou-se na cama de uma jovem de 20 anos hospedada em Sanary. Ela fugiu para Paris e avisou os pais. Explicações tiveram de ser dadas. “A jovem foi repudiada, vilipendiada pelo meu padrasto e minha mãe, perplexos com tanta vulgaridade. Explicaram que era preciso compreender: a moça havia exagerado”. E, além do mais, como dissera uma vez a mãe, “foder é liberdade”. Camille, então, perguntou-se: “Mas isso também era permitido com o meu irmão?” Infelizmente, era.

Quando Évelyne Pisier soube do abuso, ela tentou convencer a filha a calar-se, relativizando o ocorrido: felação não era penetração, em todo caso. A irmã, Marie-France, horrorizada, buscou dissuadi-la de continuar casada com Olivier Duhamel. Contou o crime aos amigos comuns, a fim de que tentassem convencer Évelyne a abandonar o pedófilo que havia abusado do filho dela. “Rapidamente, o microcosmo de poderosos, Saint-Germain-des-Prés, foi informado. Muitos sabiam e a maioria fez como se nada houvesse. Alguns comentavam: ‘Mesmo assim, o que há de nojento nessa história é que é homossexual, não?’.”

Marie-France Pisier morreu em 2011, sem ver desenlace na história que lhe envenenara a alma; Evelyne Pisier faleceria seis anos depois, de câncer fulminante, com o segredo de polichinelo preservado. Olivier Duhamel continuou a flanar pelo grand monde parisiense, como se não houvesse cometido crime nenhum, até que Camille Kouchner lançou o seu livro, com o aval dos seus irmãos. O abusador pedófilo e incestuoso perdeu os seus empregos e se tornou alvo de investigadores que não poderão prendê-lo. Amigos seus, cúmplices no silêncio, foram execrados, como o mandachuva da Sciences Po, que se viu obrigado a pedir demissão do cargo. Vítimas de incesto ganharam coragem para denunciar os abusos a que foram submetidas.

O caviar da esquerda francesa estava podre, mas todos fingiam não sentir o seu gosto ruim, o seu mau cheiro. Ainda fingem, com o seu silêncio. “Esse silêncio que não é apenas covardia. Alguns entre eles estão felizes de ter de se calar. Um tal dever atesta o seu pertencimento a um mundo. É uma marca suplementar e sempre necessária da sua identidade. À esquerda, como na grande burguesia, ‘lava-se a roupa suja em casa'”, escreve Camille. Não importa: em breve chegarão outros carregamentos de caviar e as ovas ruins do passado serão esquecidas. É próprio das ideologias cancelar o que lhes é inconveniente e fede. Menos para Camille Kouchner, que evita andar pelas ruas da sua infância, na Rive Gauche de Paris, por medo de não ter coragem suficiente de odiar Olivier Duhamel e demonstrar o seu ódio, se vier a encontrá-lo em Saint-Germain-des-Prés. Ele está solto, mas ela permanece incancelavelmente presa em si própria.

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