Alan Santos/PR“Alguém que diz combater a corrupção pode se orgulhar de acabar com a Lava Jato e proteger a rachadinha?"

O país da piada

O que o lançamento jocoso da candidatura do humorista Danilo Gentili diz sobre o Brasil neste momento
16.04.21

Brasília nem existia quando uma rinoceronte de cinco anos e 230 quilos recebeu quase 100 mil votos na eleição para vereador de São Paulo, em 1959, dez vezes mais do que o candidato mais votado. Naquela época, a política paulista vivia uma década de polarização entre duas lideranças populistas – Jânio Quadros e Adhemar de Barros – e o eleitor demonstrava enorme frustração com o desempenho de seus representantes. Batizada de “Cacareco”, a rinoceronte tinha sido emprestada pela prefeitura do Rio de Janeiro para uma temporada no novo zoológico paulistano e fez um estrondoso sucesso na cidade. Foi Jânio, governador na ocasião, quem primeiro lançou a piada, dizendo que o animal seria “um forte candidato” a sua sucessão, em 1958. No ano seguinte, a brincadeira foi levada adiante por um grupo de amigos, que fez um jingle de campanha e até distribuiu santinhos pedindo voto em “Cacareco” para uma cadeira na Câmara Municipal, transformando o episódio em um dos mais folclóricos exemplos de voto de protesto no país.

Não foi a primeira gozação eleitoral produzida pelo brasileiro. Antes de “Cacareco”, um tal “Bode Cheiroso” já havia sido lançado candidato a vereador em Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco. Trinta anos depois, na eleição para prefeito do Rio, em 1988, uma campanha criada pelo tablóide humorístico Casseta Popular rendeu cerca de 400 mil votos para o “Macaco Tião”. Com o slogan “o único político que já está preso”, o chimpanzé do zoológico carioca foi o terceiro mais votado na disputa pela sucessão de Saturnino Braga, prefeito que havia decretado a falência da cidade na véspera do pleito. Votar em animais era possível naquele período porque o voto era registrado a mão, em cédulas de papel. Se o nome escrito pelo eleitor não fosse o de um candidato oficialmente reconhecido pela Justiça Eleitoral, o voto era considerado nulo, como ocorreu com os mais de meio milhão de votos no bode, na rinoceronte e no chimpanzé.

Com a implantação das urnas eletrônicas em 1996 – as mesmas que hoje são contestadas pelos bolsonaristas –, os votos de protesto passaram a ser endereçados a candidatos reais, que ganharam fama fazendo troça com a tragicômica crônica política brasileira. O maior fenômeno desde então foi o do palhaço Tiririca, eleito deputado federal em 2010, com 1,3 milhão de votos, em uma bem-sucedida estratégia adotada pelo notório Valdemar da Costa Neto, o dono do PL, para ampliar sua bancada e o poder de barganha mesmo depois do escândalo do mensalão petista. Mais de uma década se passou e o bordão que ajudou a eleger Tiririca – “pior que tá não fica” – se mostrou uma falsa profecia. A mazela política hoje reunida na Praça dos Três Poderes, em Brasília, colocou o Brasil às voltas com uma nova piada eleitoral, que acabou repetida nas redes por eleitores incomodados com a polarização que se avizinha em 2022, entre Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva.

Acervo UH/FolhapressAcervo UH/FolhapressCacareco: rinoceronte fez sucesso nas eleições em São Paulo nos anos 1950
A piada sobre a candidatura presidencial do comediante Danilo Gentili, apresentador do SBT, surgiu com força nas redes sociais no mês passado, depois que a Câmara dos Deputados pediu ao Supremo Tribunal Federal a prisão do humorista por causa de um tuíte publicado por ele contra a votação da chamada PEC da imunidade parlamentar – aquela que pegava carona na prisão do deputado Daniel Silveira, por ameaças a ministros do STF, para ampliar a blindagem aos congressistas. “Eu só acreditaria que esse país tem jeito se a população entrasse agora na Câmara e socasse todo deputado que está nesse momento discutindo PEC de imunidade parlamentar”, escreveu Gentili na ocasião. A Câmara recuou do pedido de prisão, mas a Procuradoria-Geral da República defende que Gentili seja banido do Twitter.

Em mais de uma oportunidade, como em entrevista para O Antagonista na semana passada, o próprio comediante caçoou da candidatura presidencial. “Não sei se eu quero ser essa piada”, afirmou. Mas nunca deixou de dar vazão, como ele mesmo diz, à brincadeira. Em uma live do Movimento Brasil Livre, há cerca de um mês, ele até admitiu entrar para a política. “O pessoal começou a levar a sério mesmo”, disse. “Eu falo que daria para entrar nisso se tem uma equipe forte por trás, que você se identifica, pessoas em que você acredita, porque você não vai chegar lá para virar um boneco”, completou. A declaração empolgou algumas lideranças do MBL, de quem o humorista é amigo desde 2014, quando foi fundado o grupo que coordenou grandes protestos de rua pelo impeachment de Dilma Rousseff. Além de antipetistas, Gentili e o MBL se tornaram inimigos do bolsonarismo quase que simultaneamente, em 2019, depois que começaram a criticar as contradições de Jair Bolsonaro, para quem haviam pedido voto no ano anterior.

O coordenador nacional do MBL, Renan Santos, decidiu, então, testar o potencial eleitoral do comediante. Uma sondagem foi contratada junto ao Instituto de Pesquisa e Estratégia, que ouviu dois mil eleitores por telefone. Danilo Gentili apareceu com 4% das intenções de voto, mesmo percentual alcançado pelo governador João Doria, pelos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Ciro Gomes e pelo apresentador Luciano Huck. João Amoêdo, do Novo, tem 3%. Ou seja, com um mês de piada sobre sua candidatura, o humorista aparece empatado em terceiro lugar com todos os outros nomes de centro considerados fortes na corrida ao Planalto. Bem à frente do bloco estão Lula, com 36%, e Bolsonaro, com 31%. Renan classificou o desempenho de Gentili como uma “esperança” para a terceira via, que vê hoje todos os demais candidatos patinarem.

“Estamos sem pai nem mãe no debate nacional. O centro não tem discurso e tem um comportamento político errático. O Danilo é hoje, sem dúvida, o maior influenciador nesse caminho do meio, entre petistas e bolsonaristas. O discurso dele tem aderência. Se você tem um candidato como Lula de um lado, ex-presidiário, e um cara como Bolsonaro do outro, por que não o Danilo? É possível construir essa candidatura e nós colocamos essa provocação na mesa”, diz Renan Santos. Para ele, a eleição de Bolsonaro em 2018, centrada nas redes sociais, ferramenta que tanto Gentili quando o MBL dominam, mostra que o que hoje é visto como piada é algo politicamente viável. O MBL já demostrou força eleitoral via redes, ao eleger o deputado Kim Kataguiri em 2018 e colocar o deputado estadual Arthur do Val, o Mamãe Falei, à frente do petista Jilmar Tatto e colado no bolsonarista Celso Russomanno na eleição para prefeito de São Paulo no ano passado.

Vinícius Loures/Câmara dos DepuadosVinícius Loures/Câmara dos DepuadosO palhaço Tiririca funcionou como puxador de votos para o PL
A Crusoé, Gentili disse que a brincadeira da “candidatura presidencial”, por si, já contribui para o debate político. “Se de alguma forma o meu trabalho no humor ajuda as pessoas a pensarem sobre o tema e movimenta a vigilância popular em cima dos políticos, eu acho que, apenas isso, já é uma grande coisa para um simples humorista”, afirma.

O cientista político Humberto Dantas, coordenador do Centro de Liderança Pública, enxerga o desempenho do “presidenciável” Danilo Gentili, tanto nas redes sociais quanto na pesquisa do MBL, como um reflexo da incapacidade dos partidos de centro de construírem alianças sólidas em torno de um projeto de país que seja sério e, ao mesmo tempo, minimamente palatável e compreensível ao eleitor. “Com a devolução dos direitos políticos ao Lula e a aliança do Bolsonaro com o Centrão, esse chamado centro democrático se viu inviável para 2022. Se ninguém surge com força, como uma alternativa competitiva, as pessoas começam a pensar que qualquer coisa vale para derrotar Lula e Bolsonaro”, explica. Para Dantas, a história política brasileira ensina que os chamados “balões de ensaio” devem ser levados a sério. “Tratar isso como brincadeira pode até ser parte da estratégia. Hoje, da forma como as coisas estão, nossa política parece capaz de aceitar qualquer coisa”.

O Movimento 5 Estrelas na Itália é um exemplo de como humoristas e política podem dar match eleitoral. Fundado em 2009 pelo comediante Beppe Grillo, o movimento ascendeu rapidamente com um discurso antissistema, bradando contra os vícios da velha política e defendendo uma renovação com nomes de fora do establishment. Em quatro anos, o M5S conquistou praticamente um quarto das cadeiras na Câmara e no Senado italiano e chegou a governar o país por dois anos, com Giuseppe Conte. Em 2019, o ator e comediante Volodymyr Zelenskiy, completo novato na política, foi eleito presidente da Ucrânia, desbancando o então presidente Petro Poroshenko. Para o cientista político Ranulfo Paranhos, professor da Universidade Federal de Alagoas, o exemplo italiano mostra que usar comediantes ou comunicadores populares pode funcionar. O alerta que ele faz, e que o próprio Danilo Gentili admite quando responde seriamente sobre o assunto, é que não basta discurso atraente para ganhar uma eleição sem um projeto de país.

“Uma coisa é simplificar a forma de expor as ideias e engajar a população. Outra coisa é vulgarizar as coisas a ponto de alimentar uma extrema rejeição às instituições. O comediante caminha nessa linha limítrofe, pela própria origem do ofício dele. Se ele rompe essa linha, as instituições ficam enfraquecidas e perde a democracia. Vimos isso com o próprio presidente Bolsonaro, que se apresentou como um candidato antissistema e vive atacando as instituições. É tentador querer combater um populista fazendo populismo. Eu costumo dizer que, para a política, é muito melhor ter um burocrata sisudo do que um populista cheio de boa vontade, porque o burocrata ao menos vai respeitar as instituições”, afirma Paranhos. De qualquer forma, não deixa de ser salutar ter vozes que explorem as piadas prontas da nossa política. No caso de Danilo Gentili, até Sergio Moro entrou na brincadeira. Na sua coluna publicada na semana passada na Crusoé, ele disse que o humorista “teria o seu voto”.

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