SergioMoro

Brincando com fogo

23.04.21

Os primeiros sinais de fumaça surgiram em dezembro de 2018, quando eu já havia assumido um cargo na transição de governo. Fui, então, informado de que o Brasil corria o risco de ser suspenso da condição de membro do Financial Action Task Force, a FATF, mais conhecida no Brasil pelo acrônimo em francês GAFI, pela falta da aprovação de lei interna que permitisse o congelamento de ativos vinculados a grupos terroristas ou a grupos/pessoas que tivessem sofrido sanções do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

O Brasil estava sendo cobrado havia anos para a aprovação de lei da espécie. Na última reunião da plenária do FATF, em meados de 2018, houve um ultimato: se a lei não fosse aprovada até o dia 21 de fevereiro de 2019, data em que aconteceria a reunião seguinte, o país estaria sujeito à suspensão de sua condição de membro.

Na equipe do novo governo, fomos pegos de surpresa com aquela situação, que não era singela, pois naquele momento de transição a articulação do governo junto ao Congresso era complicada. Em janeiro, os parlamentares estariam em recesso e, na volta, o foco seria a composição das lideranças e comissões, antes de iniciarem qualquer votação. Então, a janela para a aprovação, cerca de vinte dias em fevereiro, era curta.

Não havia motivos substanciais para não aprovar o projeto. Alguns grupos políticos usualmente se opõem a medidas de combate ao terrorismo, com o receio de que as leis sejam indevidamente dirigidas contra grupos sociais, mas as definições de grupo terrorista da lei 13.260/2016 não permitem esse enquadramento. Além disso, quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas supera todos os obstáculos para alcançar o consenso em sancionar determinadas pessoas ou grupos, não há mais muita margem para se duvidar da correção dessas medidas. Estamos, afinal, falando de grupos como a Al-Qaeda ou o Estado Islâmico.

Havia, é certo, quem não vislumbrasse urgência na aprovação da lei e até mesmo, com certo ufanismo, tomasse essas exigências de organismos internacionais como algo afrontoso a nossa soberania nacional. Na verdade, o Brasil é membro do FATF, junto com diversos países, e todos eles estão sujeitos às recomendações do organismo internacional, em processos de avaliações mútuas. O Brasil já ocupou, inclusive, a presidência do órgão, que é rotativa. No fundo, é um ambiente de cooperação entre os países na construção de normas e técnicas para prevenção e combate à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo.

Se o Brasil fosse suspenso, não haveria sanções punitivas. Não há uma força vinculante das normas do FATF. Trata-se de soft law. Na prática, porém, descumprir a recomendação e ter a condição de membro suspensa seria um baque na reputação internacional do Brasil e teria consequências financeiras imediatas, pois qualquer país que não tenha leis conformes ao mínimo recomendado pelo FATF tem dificuldades em suas transações financeiras internacionais, já que passa a ser considerado um paraíso para lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo.

Temos há muito tempo cunhada entre nós a expressão “lei para inglês ver”. É uma reminiscência dos tempos em que o Reino Unido era a superpotência mundial e impunha a sua vontade e as suas leis a muitos países, inclusive ao Brasil. Consta que o Brasil proibiu o tráfico de escravos da África por pressão britânica. Como a lei, nos anos iniciais, não era imposta de maneira efetiva, foi forjada a expressão que permanece em nosso imaginário. Vendo retrospectivamente, os ingleses tinham razão em condenar o tráfico de escravos, repugnante em qualquer aspecto, sendo também possível estender, atualmente, equivalente juízo em relação às recomendações do FATF para a prevenção e repressão da lavagem de dinheiro e do financiamento ao terrorismo. É boa política, não só pelas repercussões externas, seguir essas recomendações. Nada de bom vem da lavagem de dinheiro e do terrorismo.

Graças a muitos esforços para despertar a atenção dos parlamentares para a necessidade de aprovação do projeto, conseguiu-se preservar da carbonização a reputação do país. O projeto de lei foi aprovado em 12 de fevereiro na Câmara. Viajei a Paris para participar da reunião do FATF e defender a posição do Brasil caso o pior ocorresse. O Senado aprovou o projeto no dia 20 de fevereiro, o que facilitou a minha defesa. Mesmo ainda sem a sanção presidencial, o que viria em seguida, o Brasil e o novo governo foram elogiados por terem conseguido em pouco tempo aprovar a lei requerida. Situação remediada.

Mas concluído esse desafio de estreia, o Brasil, desde então, tem passado algumas situações de aperto perante os órgãos internacionais em temas como lavagem de dinheiro e corrupção. Durante o segundo semestre de 2019, o país ficou novamente ameaçado de suspensão pelo FATF em virtude de liminar concedida por ministro do STF que paralisou, na prática, o funcionamento do sistema de prevenção de lavagem no Brasil por alguns meses. Depois a liminar foi revogada pelo próprio STF, inclusive com o voto do ministro que concedeu a liminar. Mais recentemente, o Brasil tem sido colocado em observação pelo Grupo Anticorrupção da OCDE, que tem se preocupado com alguns sinais de retrocesso no enfrentamento da corrupção. Nesse contexto, vejo com certa preocupação a discussão atual no Congresso para reforma da lei de lavagem, pelo menos considerando algumas propostas que já foram ventiladas publicamente, como exigir condenação pelo crime antecedente para se ter processo por lavagem. Se as reformas afetarem a conformidade com os parâmetros mínimos exigidos pelo FATF, novamente teremos problemas perante o órgão.

No fundo, a agenda anticorrupção e antilavagem de dinheiro precisa ser retomada pelos benefícios que provoca internamente, estimulando a integridade e a construção de um país melhor para todos. Mas, se esses motivos não forem suficientes, a vigilância dos organismos internacionais e as consequências negativas de sanções ou censuras podem ser invocadas como razões adicionais.

O assunto do momento, porém, é a cúpula do clima, na qual os países mais poderosos do mundo irão se reunir para discutir o aumento da temperatura global e as responsabilidades e metas de redução de emissão de carbono. O Brasil está sendo questionado em virtude do aumento do desmatamento ilegal e de queimadas da Amazônia nos últimos anos. Está pressionado, principalmente, pelos Estados Unidos e pela União Europeia, a reduzir a destruição ilegal da floresta. Admite-se que não é tarefa fácil, pela dimensão gigantesca da Amazônia. Ainda assim, é algo factível com ações robustas e discurso consistente. Pode-se dizer que a reunião e os seus desdobramentos serão decisivos para as relações internacionais futuras do Brasil. Nada se resolverá aqui com “leis para inglês ver”, será necessário apresentar metas e resultados concretos. A ocasião pode ser vista não só como um risco. É, principalmente, uma oportunidade para que o Brasil assuma uma posição de liderança internacional na preservação do meio ambiente, eliminando o atual isolamento.

O mundo é pequeno e os fatos estão cada vez mais conectados. Ao invés de fecharmo-nos em ufanismo e em reclamações quanto a supostas violações de nossa soberania, faríamos melhor se seguíssemos várias das recomendações internacionais que nos estão sendo, a todo momento, apresentadas. É verdade que nem todas elas são mesmo de nosso interesse e nem tudo precisa ser acatado, mas grande parte se reverte em nosso próprio benefício. O Brasil precisa resgatar a sua relevância na comunidade internacional. Não é o momento de brincar com fogo. Em alguns casos, literalmente.

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