Pedro Ladeira/Folhapress

Ele não

Prestes a ser confirmado como relator da CPI da Covid, Renan Calheiros volta a exercer protagonismo no pior momento do governo Bolsonaro. A história ensina que não convém tê-lo como adversário
23.04.21

Renan Calheiros dispensa grandes apresentações. Quatro vezes presidente do Senado, o cacique alagoano tornou-se um exímio conhecedor dos atalhos e códigos particulares de Brasília. Por isso, é sempre melhor não tê-lo como adversário político. Escaldados, todos os governos desde a redemocratização o tiveram como aliado. De Fernando Collor, passando por FHC, Lula e até Dilma, a quem Renan abandonou às vésperas do impeachment. Na juventude, o senador chegou a atuar como lateral-direito do Guarani de Maceió, mas nunca deixou de ser amador. No poder, virou um profissional da política: jamais se importou com direita, esquerda ou centro, desde que estivesse próximo das benesses oficiais. No atual governo, porém, se viu escanteado.

Bolsonaro não só preteriu Renan como possível interlocutor no Congresso como feriu seus brios logo no primeiro ano de mandato, ao avalizar o apoio público de Flávio Bolsonaro, seu filho 01, a Davi Alcolumbre na disputa pela presidência do Senado. Àquela altura, Renan ensaiava uma aproximação com o Planalto e ambicionava conquistar “o penta” no comando da casa. Agora, dois anos depois, o senador pode se tornar algoz do governo. Se virar alvo de uma CPI já é um cenário tétrico para Bolsonaro, com Renan na condução dos trabalhos o quadro pode ser ainda mais aterrador – o posto estratégico de relator deve ser confirmado nesta terça-feira, 27, com a instalação oficial da CPI.

A interlocutores, nos últimos dias, Renan tem usado um tom irônico ao se referir à investigação. “Por que o governo deve ter medo?”, questiona, com um sorriso de canto da boca. Não se sabe ainda se Renan irá preparar um arsenal contra o governo. Uma munição, no entanto, já é conhecida: um ofício no qual o Ministério da Saúde orienta a Fiocruz a divulgar e indicar a prescrição de cloroquina ou hidroxicloroquina no tratamento contra a Covid-19. O documento poderá ser usado eventualmente como prova para imputar crimes a Bolsonaro e a sua equipe na gestão da pandemia. “Solicito a ampla divulgação desse tratamento (de uso da cloroquina ou hidroxicloroquina contra Covid-19), considerando que ele integra a estratégia do Ministério da Saúde para reduzir o número de casos que cheguem a necessitar de internação hospitalar para tratamento de síndromes de pior prognóstico, inclusive com suporte ventilatório pulmonar e cuidados intensivos”, diz trecho do ofício encaminhado pelo coronel Luiz Otavio Franco Duarte, do Ministério da Saúde, à Fiocruz.

Agência SenadoAgência SenadoOmar Aziz deve ser oficializado presidente da CPI
Em um movimento previsível, o presidente da República adotou o procedimento padrão para situações de alta pressão: inflamou sua militância, que, coordenada pelo chamado Gabinete do Ódio, lançou uma campanha contra o senador alagoano. A deputada bolsonarista Carla Zambelli, do PSL, chegou a ajuizar uma ação na Justiça Federal para questionar a escolha do emedebista para a relatoria da comissão. A parlamentar alega que Renan seria suspeito para ocupar o posto porque é pai do governador de Alagoas, Renan Filho. Ela também aponta a suposta ofensa ao princípio da moralidade administrativa pelo fato de o senador ser alvo de inquéritos no Supremo. Mas, como o STF tem entendimento de que réus podem até presidir o Congresso, a simples existência das investigações não seria empecilho para que o parlamentar seja relator da CPI.

Também nesta semana, o ex-ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antônio, denunciado por envolvimento no laranjal do PSL, ressurgiu das cinzas para pedir à Procuradoria-Geral da República que aja contra a escolha do emedebista. No Senado, no entanto, já há acordo para que o senador Omar Aziz, do PSD, assuma o comando da comissão e Renan, a relatoria. O próprio presidente do PSD, Gilberto Kassab, que está cada vez mais distante do governo federal, rechaçou qualquer possibilidade de troca para atender ao Planalto. 

Como viu que a campanha de sua claque nas redes não logrou êxito, Bolsonaro mudou de estratégia: passou a tentar uma aproximação com Renan. Na manhã de quarta-feira, 21, ligou para o filho do senador, o governador de Alagoas, para colocar o governo federal à disposição do estado no combate ao coronavírus. “É evidente que o presidente tem uma relação com o governador de Alagoas, mas é uma questão administrativa. Eles conversam sempre por telefone. Do ponto de vista da CPI, o nosso propósito é fazer uma investigação profunda, criteriosa, absolutamente isenta em busca da verdade para darmos as respostas que a sociedade toda cobra. De modo que não haverá nenhuma dificuldade de conversar com ninguém”, disse Renan em entrevista à GloboNews. “Conversarei com qualquer um, sobretudo com o presidente da República, se ele entender que é o caso”, prosseguiu.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéRenan está em permanente contato com Lula: conversas sobre como fazer Bolsonaro sangrar até a eleição
De fato, como as intenções de Renan, em geral, não são revestidas de republicanismo, convém sempre ficar de olho em seu comportamento. O político joga combinado com o ex-presidente Lula, que não quer o impeachment de Jair Bolsonaro, mas apenas vê-lo “sangrar”, a fim de enfrentar um cambaleante candidato à reeleição em 2022. Embora nunca tenha recebido uma ligação de Bolsonaro, no último dia 7, o telefone do senador Renan vibrou. Do outro lado da linha estava Lula. O petista quer atrair o MDB velho de guerra para a sua aliança e conta com o apoio e os préstimos do cacique alagoano. Na conversa, o futuro relator da CPI prometeu jogar afinado com o ex-presidente. Desde então, ambos têm combinado cada passo. Nas últimas semanas, o senador voltou a se dedicar a um de seus passatempos prediletos: os ataques à força-tarefa da Lava Jato. Ao comemorar a decisão que livrou Lula das condenações, ele aproveitou para defender a prisão do procurador Deltan Dallagnol – o ódio à Lava Jato e ao ex-juiz Sergio Moro, aliás, é outro ponto de convergência entre Renan e Lula.

Para além da parceria com o petista, a ambição de Renan em voltar aos holofotes tem motivações paroquiais e também jurídicas. O cacique alagoano quer manter o controle sobre o estado após a saída de Renan Filho do governo – o herdeiro do senador vai terminar o segundo mandato e não poderá se candidatar à reeleição. Renanzinho, como é conhecido, ainda não tem um sucessor, mas, seja quem for o escolhido, os Calheiros querem se certificar de que vão conservar o domínio. Na relatoria da CPI, o parlamentar do MDB terá mais espaço para se contrapor ao presidente da Câmara, Arthur Lira, do Progressistas. O aliado de Jair Bolsonaro, potencial candidato ao governo alagoano, é hoje o maior adversário político de Renan no cenário local. Voltar a exercer um papel de destaque também é importante para que Renan mantenha sua trajetória de vitórias na Justiça. Ainda que fervilhem provas e acusações de envolvimento do senador em escândalos de corrupção e lavagem de dinheiro revelados nas últimas décadas, o Supremo tem sido benevolente com o emedebista. A corte garantiu o arquivamento de uma série de inquéritos, relacionados principalmente às operações Lava Jato e Zelotes. De um total de 18 investigações, ele conseguiu se livrar de onze. Em alguns dos sete processos que ainda tramitam no STF, Renan conseguiu vitórias recentes. Em fevereiro, o ministro Dias Toffoli pediu que a análise da denúncia sobre o chamado Quadrilhão do MDB fosse retirada do plenário virtual – com isso, o julgamento foi adiado por tempo indeterminado. Segundo o Ministério Público Federal, caciques do partido, entre eles Renan, teriam recebido propinas de mais de 864 milhões de reais, com prejuízos de 5,5 bilhões de reais à Petrobras. Em dezembro de 2019, a Segunda Turma do STF recebeu uma denúncia contra o senador alagoano por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A publicação do acórdão demorou um ano e a defesa do parlamentar apresentou embargos – com isso, o inquérito ainda não virou ação penal.

Em seu histórico de comissões parlamentares de inquérito, Renan atuou muito mais em operações-abafa do que propriamente para incendiá-las. Foi o assim na CPI da Petrobras – durante a instalação da comissão, ele disse que o Congresso tinha “mais o que fazer” –, na CPI dos Bingos e na CPI dos Correios. Mas, para desespero de Bolsonaro, isso não quer dizer que o alagoano jamais tenha agido numa comissão parlamentar de inquérito para implodir o presidente de turno. Em 1992, depois de integrar a tropa de choque de Collor no Congresso, Renan submergiu quando a imagem do ex-presidente começou a se deteriorar e voltou à cena ao depor na CPI que investigava o então presidente. No depoimento mais longo da comissão – foram oito horas –, Renan não só confirmou que Collor sabia do esquema montado pelo operador PC Farias como acusou assessores próximos do presidente de fazer parte da trama. No dia seguinte, Collor cunharia a frase que se tornou um dos símbolos do processo de impeachment: “Não me deixem só, minha gente”. Se Renan é capaz de “deixar sós” ex-diletos aliados, imagine o que ele pode fazer com adversários. Bolsonaro, ao menos na fotografia de hoje, é um deles – e tem o que temer.

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