Marcos Corrêa/PR

Os encontros secretos de Bolsonaro

De Frederick Wassef aos parceiros de negócios do 04, uma parte relevante dos compromissos do presidente da República passa ao largo dos registros oficiais
23.04.21

O ano era 2008. Após saber que o serviço de segurança do Planalto impusera dificuldades à entrada de seu amigo do peito José Carlos Bumlai no palácio, o então presidente Lula ordenou que fosse afixado um cartaz com a foto do pecuarista na recepção, para evitar que o constrangimento se repetisse. Bumlai, dizia o cartaz com o timbre do Gabinete de Segurança Institucional, estava autorizado a entrar “em qualquer tempo e qualquer circunstância”. Poucos sabiam àquela altura, mas o passe livre concedido a Bumlai tinha razão de ser. Tempos depois, já na Operação Lava Jato, ele viria a ser condenado a mais de nove anos de prisão por fazer negócios nas sombras do governo, valendo-se da proximidade com o amigo presidente.

Sob Jair Bolsonaro, as visitas de amigos e parceiros aos palácios presidenciais em circunstâncias especiais se repetem – e algumas delas se dão sem qualquer registro oficial, com ares de secretismo. No início desta semana, o jornal Folha de S.Paulo revelou que o presidente se encontrou no Palácio do Planalto com o empresário Wellington Leite, que, meses antes, havia doado um carro elétrico para um projeto ligado aos negócios de Jair Renan. O encontro não constou da agenda do presidente por motivo óbvio: deixaria transparecer que o filho 04 de Bolsonaro tem usado de sua condição privilegiada para alavancar seus próprios negócios e parcerias. Antes, já se sabia que os parceiros de Jair Renan, com a ajuda de um assessor do gabinete presidencial, haviam conseguido uma audiência com o ministro Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, para apresentar um projeto em que pretendiam ganhar muito dinheiro.

O caso do empresário Leite está longe de ser o único. As agendas secretas de Bolsonaro envolvem encontros a sós com lobistas, empresários e advogados que cuidam de processos de seus filhos. O próprio presidente já manifestou, por mais de uma vez, que “não gosta de ter sua agenda exposta porque não quer ser infernizado pela imprensa”. Um dos frequentadores mais assíduos do Planalto que passam ao largo dos registros oficiais é o notório advogado Frederick Wassef, que, desde o início do atual governo, assim como Bumlai na era Lula, circula pelos corredores do palácio com carta branca do presidente.

As visitas de Wassef não constam, quase nunca, da agenda oficial da Presidência, embora ele tenha que deixar o nome anotado ao passar pela recepção. Foi justamente a partir desses registros, não disponíveis ao público, que Crusoé descobriu que, nos dois meses que antecederam a prisão do também notório Fabrício Queiroz, ele passou nada menos que onze horas no gabinete de Bolsonaro. Na agenda oficial do gabinete, nesse mesmo período, ficou registrada apenas uma única visita de Wassef, de 15 minutos. Outras quatro passaram ao largo dos expedientes públicos que servem para dar transparência às atividades de governo. Foram, por assim dizer, audiências secretas.

Reprodução/InstagramReprodução/InstagramWeliington Leite, o empresário capixaba parceiro de Jair Renan, esteve no Planalto com o presidente: fora de agenda
Wassef também tem trânsito livre na Secretaria de Governo, comandada por Luiz Eduardo Ramos, onde ele costuma aguardar Bolsonaro finalizar os compromissos do dia para, em seguida, ter encontro a sós com o presidente. Após a prisão de Queiroz, o GSI passou a usar do argumento do sigilo para negar acesso aos registros de entrada do advogado no Planalto. Wassef manteve firme sua rotina de visitas. Ao longo do segundo semestre de 2020, ele esteve na sede do governo outras vezes. Já em 2021, os encontros fora da agenda passaram a acontecer quase que semanalmente. O advogado também frequenta o Palácio da Alvorada.

Há outros encontros sigilosos para tratar dos problemas da família Bolsonaro com a Justiça. Um deles, em 25 de agosto do ano passado, reuniu advogados da defesa de Flávio Bolsonaro, além do ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e do diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem. Essa reunião, em especial, não ficou secreta por muito tempo. Veio à luz juntamente com a revelação de que a Abin atuou na produção de relatórios para auxiliar a defesa de Flávio. Registros da portaria do Alvorada mostram que Luciana Barbosa Pires, advogada do 01, esteve no Planalto nos dias 25 e 26 de agosto. Em um dos dias, ela estava acompanhada de Juliana Bierrenbach, que também atua na defesa do primogênito do presidente.

Além de advogados, lobistas do setor de armas têm marcado presença nos palácios presidenciais sem que os encontros apareçam na agenda – tal qual os de Wassef, eles ficam registrados apenas na portaria principal. Rafael Mendes de Queiroz, da Taurus e da Companhia Brasileira de Cartuchos, a CBC, já visitou o Palácio do Planalto em quatro oportunidades. Rafael é filho do tenente José Ronaldo de Queiroz, que atuou na Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército, área responsável pelo setor de armamentos e munições, entre 2007 e 2017.

Para manter a discrição nos encontros que podem gerar algum barulho, Bolsonaro ordenou que o GSI, responsável pelo controle de acesso às dependências presidenciais, não tornasse esses compromissos públicos, mesmo nos casos em que os registros são solicitados por meio da Lei de Acesso a Informações. A ordem passou a ser cumprida à risca pelo ministro Augusto Heleno Ribeiro. Até o ministro do Supremo Gilmar Mendes, alçado recentemente à condição de “amigo” do governo, encontrou Bolsonaro sem registro. No dia 28 de março deste ano, um domingo, ele visitou o presidente no Alvorada. A agenda oficial registrava que, naquele dia, Bolsonaro não tinha compromissos oficiais.

Wallace Martins/Futura Press/FolhapressWallace Martins/Futura Press/FolhapressWassef no Planalto: em dois meses, onze horas com Bolsonaro no gabinete
No Alvorada, as entradas e saídas são anotadas em um caderninho de papel guardado na portaria. Desde 2019, a Presidência se recusa a dar acesso às informações constantes do caderno. Os dados são negados até para congressistas. O deputado Ivan Valente, do PSOL, por exemplo, já fez mais de uma dezena de pedidos para averiguar visitas de lobistas dos setores de energia e de armas, mas nunca foi atendido.

Além de autoridades e empresários, blogueiros e youtubers bolsonaristas costumam ter encontros reservados com Bolsonaro nos finais de semana. Allan dos Santos, investigado em inquéritos do STF, frequentava o Alvorada em 2020 antes de se mudar para os Estados Unidos, sem que as visitas fossem registradas. Vários desses visitantes vão à residência oficial sob pretexto de participar de churrascos e almoços promovidos pelo presidente. Quando Bolsonaro não quer que eles sejam descobertos, orienta o staff para deixar que entrem por um acesso alternativo ou pelos fundos, pelo Lago Paranoá – o próprio Frederick Wassef já usou desse expediente, assim como o ex-deputado Alberto Fraga, amigo pessoal do presidente.

Para manter em segredo os encontros que Bolsonaro quer manter distantes dos olhos do público, o GSI tem usado como artifício a Lei Geral de Proteção de Dados, que passou a valer em agosto de 2020. O sigilo desses encontros “cumpre a finalidade específica de segurança da mais alta autoridade do Poder Executivo do país”, argumentou o gabinete em resposta a uma solicitação feita por Crusoé. Pareceres da Controladoria-Geral da União também têm sido utilizados para reforçar as negativas. Um deles, de 26 de dezembro de 2019, assinado pelo ouvidor-geral Fábio do Valle Valgas da Silva, foi anexado a um processo em que a Mesa Diretora da Câmara pedia acesso à lista de participantes de 21 reuniões realizadas pelo governo para tratar da reativação da base espacial de Alcântara, no Maranhão.

Em 10 de outubro de 2019, após pressão de parlamentares pela divulgação das agendas secretas, o general Augusto Heleno enviou um ofício à Câmara sustentando que os “registros de acesso às dependências presidenciais (incluindo Palácio do Jaburu e a residência Oficial da Granja do Torto) deveriam ser mantidos em sigilo” porque sua exposição poderia colocar em risco a vida de Jair Bolsonaro e de seus familiares. Ao longo do último mês, Crusoé solicitou informações de visitas de Wassef, empresários e advogados da família Bolsonaro ao Palácio do Planalto em 2021. O GSI se recusou a atender o pedido. Ao ser questionado sobre a frequência com que Jair Renan Bolsonaro e convidados dele frequentam o palácio, o gabinete de Heleno respondeu: “A esposa e os filhos do Senhor Presidente da República estão previamente cadastrados para entrada no Palácio do Planalto, inclusive com acesso franqueado à entrada funcional do Presidente da República”. A lógica é a de sempre: o sistema é feito para manter oculto o que os poderosos de ocasião querem esconder. A transparência, que deveria ser regra, é exceção.

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