A cloroquina envenena Bolsonaro
A obsessão pela cloroquina, medicamento elevado à categoria de panaceia da Covid por Jair Bolsonaro e seus aliados, transformou-se em um veneno com potencial para intoxicar o governo na CPI e complicar o já debilitado quadro político do presidente. A comissão de inquérito instalada nesta semana no Senado, se realmente tiver interesse em investigar a questão a fundo, já tem à disposição um farto material que mostra as digitais do governo na mobilização de ministérios e até do Exército para abastecer e ampliar a prescrição indiscriminada no país de um remédio ineficaz e potencialmente mortal, enquanto o mundo se adiantava na corrida pela compra de vacinas. São mais de 600 páginas de documentos oficiais, aos quais Crusoé teve acesso, incluindo pareceres, atas de reunião e trocas de e-mails internos que serviram de base para viabilizar a fabricação e a distribuição do produto, a partir de razões eminentemente políticas.
Na próxima semana, a CPI promete se debruçar justamente sobre o chamado “Kit Covid” – que, além de outras substâncias sem respaldo científico para o tratamento do coronavírus, como a ivermectina, engloba a cloroquina. O debate será impulsionado pela presença do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que foi convocado para prestar depoimento aos senadores na terça-feira, 4. O ex-deputado do DEM foi demitido em abril do ano passado exatamente por sua recusa em referendar um protocolo de prescrição da cloroquina. Um mês após sua saída, o general Eduardo Pazuello, substituto de Nelson Teich, sucessor de Mandetta que ficou apenas 29 dias no cargo, avalizou a publicação de um protocolo que estimulava a prescrição do medicamento até em casos leves da doença.
Entre os documentos obtidos por Crusoé e já disponíveis para a CPI está a íntegra do processo administrativo que resultou no polêmico protocolo. O texto datado de 20 de maio de 2020 ganhou o nome de “Orientações para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19”. A norma cita “a larga experiência do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento de outras doenças infecciosas (…) e a inexistência de outro tratamento eficaz disponível para a Covid-19”. Como àquela altura a indicação do uso da substância já era duvidosa, o material deixa patente a preocupação de gestores da Saúde em não deixar rastros. Instada a emitir um parecer sobre a publicação da norma, a Advocacia-Geral da União estranhou o fato de o processo ter chegado ao órgão sem a assinatura de Pazuello. “Cumpre observar que o processo não veio acompanhado de despacho, bem como não foi encaminhado pelo titular máximo do órgão do Ministério da Saúde”, apontou a AGU (leia abaixo).
Recomendada para tratar de malária, artrite e lúpus, a cloroquina foi considerada ineficaz pela Organização Mundial da Saúde para o tratamento da Covid-19 em maio do ano passado, dois meses após o início da pandemia no país. Não demorou para que estudos demonstrassem que o medicamento também elevava o risco de morte dos pacientes – um dos efeitos colaterais mais graves é a arritmia cardíaca. Mesmo ciente dos perigos, o governo Bolsonaro, além de recusar àquela altura a compra da vacina da Pfizer, cujo primeiro lote só desembarcou nesta quinta-feira, 29, no país, persistiu na desenfreada campanha pela distribuição do remédio e mobilizou o Exército para ampliar a produção da substância no país.
Um ofício assinado de próprio punho pelo então ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, atesta que, entre 2015 e 2018, o laboratório do Exército havia produzido 250 mil comprimidos de cloroquina de 150 miligramas. A produção saltou para 1,2 milhão de unidades (leia abaixo) apenas nos primeiros 3 meses de 2020. Até junho, haviam sido produzidos 3,2 milhões de comprimidos – ou seja, não foi por acaso que o consumo do remédio pelos brasileiros cresceu 358% no primeiro semestre de 2020. Outro documento subscrito por Azevedo, que deixou o governo recentemente, diz que a alta na produção da cloroquina só foi possível graças a uma suplementação orçamentária de 1 milhão de reais. “Foram atendidas até o momento todas as pautas de distribuição (da cloroquina)”, acrescenta o texto.
Quem também será chamada a colaborar é a procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira. A integrante do Ministério Público Federal preside um inquérito civil aberto para apurar se Eduardo Pazuello cometeu atos de improbidade no comando da Saúde. Entre os assuntos na mira do MPF, está a criação do aplicativo TrateCov, outra frente de apuração da CPI da Covid. O sistema foi lançado pelo ministério em janeiro, com o objetivo de orientar profissionais de saúde no diagnóstico e no tratamento de pacientes com coronavírus. O aplicativo, entretanto, funcionava como um robô que prescrevia cloroquina: qualquer sintoma inserido no sistema levava a uma recomendação de prescrição do “Kit Covid”, até mesmo para bebês recém-nascidos. A repercussão foi catastrófica e o governo justificou que a tecnologia, ainda em fase de testes, havia sido liberada indevidamente por um hacker. Como a justificativa tinha ares de desculpa esfarrapada, o Ministério Público pediu explicações ao Ministério da Saúde.
Apavorados com o desenrolar da CPI, senadores governistas já preparam uma contraofensiva. Depois de uma semana de derrotas para o governo, como a confirmação de Renan Calheiros na relatoria da comissão, na esteira de uma malfadada tentativa de recorrer à Justiça – um juiz de primeira instância conhecido do bolsonarismo chegou a proferir uma decisão teratológica barrando o nome do cacique alagoano, mas a sentença foi derrubada horas depois –, parlamentares alinhados com o Planalto apresentaram requerimentos para a convocação de alguns dos poucos médicos que se dignaram a defender publicamente a cloroquina.
A próxima semana promete esquentar de vez a CPI. A pedido da oposição, além de Mandetta, ainda irá depor na terça-feira o ex-ministro Nelson Teich, que também será indagado, entre outros temas, sobre os medicamentos recomendados pelo governo. No dia seguinte será a vez de Eduardo Pazuello, no que já é um dos depoimentos mais aguardados da comissão. A julgar pelo plano de trabalho inicial da CPI, as linhas de investigação incluirão também a omissão do governo na encomenda de vacinas para conter o vírus, o colapso da saúde no Amazonas e as ações destinadas aos povos indígenas, para os quais o governo também orientou o uso de cloroquina.
Enquanto o governo, em um movimento de aflição, tenta ajustar formas de tentar ludibriar a opinião pública, no cenário internacional o Brasil é alvo de chacota pela defesa de remédios tão inúteis quanto perigosos. Recentemente, o primeiro-ministro francês, Jean Castex, arrancou risadas de parlamentares em Paris ao criticar a prescrição de cloroquina pelo governo de Jair Bolsonaro. Como para os brasileiros esse assunto não tem graça nenhuma, ainda mais com o trágico anúncio de que o país alcançou nesta semana mais de 400 mil mortes pela doença, a comissão terá a chance de levar à responsabilização os agentes públicos que viraram as costas para a ciência e enfiaram o Brasil no abismo. Em especial, o presidente da República.
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