Carlos Fernandodos santos lima

O Necromante e os mortos-vivos

30.04.21

Necromantes são conhecidos na literatura e no cinema como bruxos e espíritos que por magia negra trazem à vida pessoas que já morreram. Não a uma vida plena, mas a um estado catatônico, a uma semivida na qual ficam vagando por aí como mortos-vivos. Todos conhecem a sua versão na cultura pop, os zumbis, que se alimentam de outros seres humanos, transferindo-lhes a maldição a cada mordida. Um dos mais famosos desses espíritos necromantes é o do Barão Samedi, um assassino enquanto vivo, representado de cartola e bengala e o rosto pintado com uma caveira, que na religião vodu haitiana tem a função de encaminhar os mortos, inclusive para essa semivida.

Fora dos filmes de terror e animações da Disney, há também necromantes no mundo real, especialmente em nossa política, capazes de trazer à vida alguns personagens que já considerávamos esquecidos e sem poder – o que na política sempre significa a morte. O necromante maior de nossos dias, mercador da morte e ressuscitador de mortos, o Barão Samedi da nossa política, chama-se Jair Bolsonaro. Seus atos, omissões e palavras, como um feitiço de magia negra, não somente são responsáveis pela morte de milhares de brasileiros, como ainda trazem à vida políticos que já deviam estar sepultados, e bem sepultados, da vida pública.

Renan Calheiros é um desses mortos-vivos trazidos à vida por responsabilidade de Bolsonaro. Não que esse multi-investigado e nunca condenado político alagoano, que apareceu na vida pública brasileira como um dos principais cúmplices do desastroso governo Collor, tenha realmente morrido – lendas dizem que matar politicamente um ser desses é preciso não só cortar a cabeça, mas também incinerá-la. Piadas à parte, certo é que após a derrota para a presidência do Senado para Davi Alcolumbre, Calheiros passou a ser um personagem menor da política nacional, cujo único prazer mesquinho que restou foi, por meio de seus subservientes afilhados, o de perseguir Deltan Dallagnol, que identificou como o grande responsável por sua derrota.

Esse ocaso de Renan Calheiros ficou também evidente após pleitear o comando da Comissão de Constituição e Justiça do Senado no início desta nova legislatura e ser preterido em favor novamente de Alcolumbre. Renan caminhava dessa forma para o ostracismo, para a insignificância política, para um velório em vida, como acontece com seu zumbificado conterrâneo Collor de Mello, mas que de repente ressurgiu dessa cova para comandar a relatoria da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal que investigará as falhas da gestão federal no combate ao coronavírus.

Renan Calheiros é a representação daquilo que nossa política tem de pior – e não faltam concorrentes para esse título. O cacique político alagoano é torpe, vil, maledicente e intelectualmente despreparado, mas não é burro. Sabe que lhe deram um palanque e vai usá-lo para se promover, especialmente diante de uma plateia de jornalistas ávida em produzir notícias contra Bolsonaro. Não que o presidente não mereça, pois se trata de uma excrescência de nosso sistema político defeituoso, mas por causa de um maniqueísmo atávico de nossa imprensa, incapaz de um julgamento crítico e justo sobre ambos, Renan será aplaudido, mesmo que não produza nada de realmente útil para a população, e Bolsonaro, com justiça ou não, criticado.

Assim, mesmo tendo Renan Calheiros recheado o seu primeiro discurso na CPI do cinismo típico dos falsos moralistas, pois muito do que falou poderia ser usado contra ele em alegações finais de processos por seus crimes, o que se viu foi uma aclamação embevecida da imprensa ao seu novo paladino, mesmo todos sabendo sobre sua ficha policial extensa, apenas por ser ele capaz de produzir a tão desejada destruição política de Jair Bolsonaro. Infelizmente vivemos num mundo em que o pensamento crítico e não dualista não encontra eco nem mesmo entre pessoas intelectualmente preparadas.

Da mesma forma, coadjuvando aqui outros necromantes, profissionais de uma magia ainda mais negra, a dos processos do Supremo Tribunal Federal, Jair Bolsonaro tornou-se o maior responsável por transformar Lula, um criminoso condenado em três instâncias por corrupção, em nome palatável para muitos para a próxima eleição presidencial. O ex-presidente, salvo para o próprio partido acostumado com sua degeneração moral, era até recentemente um político desprezado e ignorado, cujo odor forte de corrupção afastava até mesmo ex-aliados da esquerda.

Agora, impulsionado pela inacreditável incompetência de Bolsonaro; pelos inúmeros erros de sua gestão, especialmente na saúde; pelas suspeitas de envolvimento seu e de seus familiares com milícias e rachadinhas; pelo insuportável e abusivo uso de mentiras por seu gabinete do ódio e por sua verborragia estúpida e preconceituosa, temos um enojamento tal da sociedade brasileira com a figura do atual presidente que, no pensamento simplista que divide o mundo entre o bem e o mal, entre nós e eles, parte daqueles que rejeitaram o Partido dos Trabalhadores na última eleição talvez acabem relativizando a corrupção do governo Lula apenas para poder tirar Bolsonaro do poder. Ou seja, mesmo com toda fedentina que o cerca, Lula tornou-se competitivo por obra e graça do atual presidente.

Infelizmente vamos caminhando para esse apocalipse. De nada adiantará uma CPI neste momento, pois há muito tempo estas comissões são apenas palco para inomináveis interesses lutarem e fazerem valer falsas narrativas com objetivos eleitoreiros. Jair Bolsonaro deveria, isto sim, ser acusado dos diversos crimes de responsabilidade cometidos e comprovados e retirado do poder pelo impeachment. De nada vão valer para brasileiros mortos que teremos durante a existência desta comissão os discursos dos falsos-moralistas, dos sepulcros caiados e dos caciques da corrupção contra Jair Bolsonaro, pois este continuará no comando do genocídio de brasileiros. A CPI é apenas uma maneira para os partidos e políticos, aplaudidos pela imprensa, tornarem também Bolsonaro um morto-vivo até 2022, para depois lutarem entre si para ver quem será o novo dono do butim.

Seja como for, nós, os vivos, aqueles que precisam trabalhar e viver honestamente com suas famílias e amigos, vamos sofrendo como sempre sofrem as pessoas comuns em filmes de zumbis. Fechamo-nos em casa na esperança de sobrevivermos, enquanto não temos vacinas, kits de intubação ou oxigênio. Vemos corruptos se agigantarem porque sabem que temos medo e cansaço das ruas. O Brasil está se tornando um Walking Dead caboclo onde tentamos sobreviver entre a peste e monstros canibais, e apenas a sorte pode ser invocada para nos salvar. Mas, pelo jeito, o destino nos reserva outros quatro anos de um governo morto-vivo depois de 2022. Salve-se quem puder.

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