Adriano Machado/CrusoéA entrada do complexo da Abin: ordem partiu de Brasília

Bolsonaro põe a Abin no jogo contra a CPI

Como parte do esforço para tirar o presidente das cordas na CPI da Covid, o governo usa o serviço secreto para levantar suspeitas sobre governadores e prefeitos
07.05.21

Tão logo o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, determinou a instalação da CPI da Covid no Senado, há um mês, o presidente Jair Bolsonaro e sua tropa aliada passaram a investir na tentativa de arrastar governadores para dentro das investigações. A estratégia tinha como objetivo claro tirar o foco do Palácio do Planalto e dividir o desgaste da investigação com um número maior de políticos, especialmente os rivais do presidente. “Se não mudar a amplitude, a CPI vai simplesmente ouvir o (Eduardo) Pazuello, ouvir gente nossa, para fazer um relatório sacana”, disse Bolsonaro em conversa gravada pelo senador Jorge Kajuru, em abril. Até agora, o plano falhou. Controlada por opositores do governo, a CPI deu início nesta semana à fase de depoimentos ouvindo o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, que detalhou como Bolsonaro contrariou orientações técnicas do Ministério da Saúde e contribuiu diretamente para o agravamento da pandemia. Nesse contexto, com o presidente ainda mais emparedado, o governo recorreu à Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, para municiá-lo com as informações que Bolsonaro e seus aliados querem para tentar mudar os rumos da CPI.

Crusoé teve acesso com exclusividade à “demanda urgente” que a Abin distribuiu para agentes de inteligência em todos os estados do país, determinando uma “compilação de dados” sobre “irregularidades relacionadas à pandemia” em “âmbito estadual e municipal”. A ordem foi enviada por mensagem de WhatsApp – sim, não se espante, o serviço secreto brasileiro envia ordens de serviços por aplicativo de mensagens – na manhã da última quarta-feira, 5, um dia após o depoimento de Mandetta na CPI. O texto deixa claro o que o comando da Abin em Brasília queria de seus agentes. Destaca dois exemplos de irregularidades: “desvios de verbas” e “compras irregulares”. A pesquisa, diz ainda a mensagem, deveria ser feita “exclusivamente em fontes abertas das SEs (as superintendências estaduais da agência), ou seja, sem acessar os bancos de dados sigilosos. Juntamente com a mensagem, os oficiais receberam o link de uma planilha de Excel onde deveriam colocar os nomes dos estados e das cidades identificados na investigação, um título resumindo o problema detectado e a fonte da informação coletada. A Abin tinha pressa. O arquivo deveria ser preenchido até as 18 horas daquele mesmo dia.

Raul Spinassé/FolhapressRaul Spinassé/FolhapressBolsonaro: desde o início da CPI ele quer dividir os ônus com governadores
A mensagem, obtida por Crusoé com fontes primárias envolvidas no trabalho, foi enviada para as 26 superintendências estaduais da Abin a partir de um número de telefone de plantão do Centro de Monitoramento de Crise da agência, conhecido como Cemoc. Trata-se do setor que tem por atribuição coletar informações sobre eventuais crises causadas por greves, desastres naturais, acidentes aéreos e apagões, por exemplo. A ordem para a coleta de dados sobre suspeitas de irregularidades envolvendo prefeituras e governos estaduais na gestão da pandemia saiu do Centro de Inteligência Nacional, o CIN, criado por decreto pelo presidente Bolsonaro em julho do ano passado. O CIN fica diretamente subordinado ao gabinete do diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, e tem como função principal “planejar e executar atividades de inteligência para enfrentar ameaças à segurança e à estabilidade do país, sejam elas oriundas de atividades criminosas ou de forças estrangeiras”.

Internamente, o pedido feito por Brasília provocou revolta entre os agentes. Primeiro, por causa do conteúdo político da “demanda urgente”, que foge do escopo de trabalho dos oficiais de inteligência – o levantamento foi solicitado justamente no momento em que o presidente da República tenta transferir, principalmente para governadores que lhe fazem oposição, a responsabilidade pela desastrosa gestão da pandemia que já matou mais de 400 mil brasileiros. Em segundo lugar, porque o trabalho solicitado, uma “compilação de dados” em “fontes abertas”, costuma ser feito por funcionários menos graduados na agência, chamados de “estagiários”. A encomenda, feita a oficiais com anos de carreira no serviço de inteligência, levantou a suspeita de que a cúpula da Abin temia que a solicitação vazasse. Na prática, afirma um agente ouvido por Crusoé, o material tem mais valia para um contra-ataque político de Bolsonaro na CPI do que para a elaboração de políticas de segurança ou de prevenção ao crime organizado e o terrorismo, que são atribuições da Abin.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéHeleno e Ramagem: levantamento tinha que ser feito até as 18 horas
O Centro de Inteligência Nacional, setor da agência de onde partiu a ordem para o levantamento das informações, abriga hoje o que servidores concursados do órgão chamam de “central bolsonarista” da agência, ou “Abin paralela”. Como mostrou Crusoé em dezembro, foi para dentro do CIN que Ramagem levou agentes da PF de sua inteira confiança, como Marcelo Bormevet, um dos policiais que cuidaram da segurança de Jair Bolsonaro na campanha de 2018. Defensor ferrenho de Bolsonaro nas redes sociais e amigo de Carlos Bolsonaro, o filho 02 do presidente apontado como idealizador da estrutura clandestina na Abin, Bormevet é conhecido internamente como o “homem do capitão”. Colegas de serviço atribuem a ele a elaboração dos relatórios que foram enviadas por Ramagem ao senador Flávio Bolsonaro por WhatsApp no ano passado, com instruções que poderiam ajudar as advogadas do filho 01 nas tentativas de anular as provas do “rachid” em seu antigo gabinete. A atuação da Abin em defesa de Flávio está sendo investigada pela Procuradoria-Geral da República. Em agosto de 2020, Ramagem chegou a participar de uma reunião com as advogadas do senador para discutir o assunto com o presidente e o ministro Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, a quem a Abin é subordinada.

Após o caso envolvendo Flávio Bolsonaro vir à tona, abriu-se uma temporada de caça às bruxas dentro da agência. No início de abril, um servidor foi alvo de uma operação de busca e apreensão por suposta participação em vazamento de dados do órgão. Segundo as investigações, ele teria repassado a jornalistas uma imagem do organograma interno da Abin. No mesmo dia em que a busca foi realizada – na ação foi apreendido até o computador da estação de trabalho do agente em Brasília –, Ramagem divulgou um vídeo no qual usava a investigação para se defender da suspeita de que pôs a estrutura oficial da agência para trabalhar em favor de interesses pessoais do clã presidencial. Segundo o diretor-geral, as investigações internas concluíram que ele e a Abin não tiveram “qualquer ligação com supostos relatórios, criados para auxiliar a defesa de senador da República”. Como Crusoé publicou, foi Ramagem quem enviou os relatórios para Flávio. Depois, eles foram encaminhados para as advogadas do senador.

Governo do Estado de S.PauloGoverno do Estado de S.PauloO governador paulista é um dos alvos preferenciais do presidente
À diferença do que ocorreu no caso de Flávio Bolsonaro, a “demanda urgente” para levantar irregularidades envolvendo a aplicação de verbas para o combate à pandemia por governadores e prefeitos seguiu o rito normal da Abin. Passou pelos canais oficiais da agência e assim chegou às superintendências – em todas as unidades da federação há representações do serviço secreto, que são diretamente subordinadas à direção-geral, em Brasília.

Como um órgão de estado, a Abin não pode ser usada para atender a conveniências políticas dos presidentes de plantão. Por lei, a agência, que sucedeu o antigo Serviço Nacional de Informações, deve auxiliar o presidente e os ministérios com dados e análises técnicas que ajudem a tomar as melhores decisões. Entre as atividades mais corriqueiras da agência está o levantamento da ficha de indicados para cargos de confiança no governo – uma tarefa que, como a história recente mostra, nem sempre é desempenhada com o devido rigor. Os agentes do serviço secreto também atuam na produção de relatórios para a prevenção de ameaças ao país. Para isso, trabalham por vezes infiltrados, como nos filmes de espionagem, e contam com fontes que costumam ser remuneradas com a milionária verba secreta destinada anualmente à agência. Há, dentro da estrutura do órgão, divisões dedicadas, por exemplo, a monitorar grupos terroristas e facções criminosas. Da mesma forma que não pode ter sua atividade desvirtuada para fins partidários ou para atender a interesses pessoais dos governantes de plantão, a Abin não tem poderes para fazer prisões ou quebrar sigilos.

Edilson Rodrigues/Agência SenadoEdilson Rodrigues/Agência SenadoCPI: a ordem à Abin é parte do plano do governo para tentar sair da berlinda
Nesta quinta-feira, 6, Crusoé enviou as seguintes perguntas ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República: 1) Por que as superintendências regionais da Abin receberam ordens internas, via Cemoc, e a pedido do CIN, para levantar dados em fontes abertas sobre desvios e compras irregulares em prefeituras e governos estaduais?; 2) Qual é a relação dessa tarefa com as funções desempenhadas pela Abin? A assessoria do gabinete do ministro Augusto Heleno confirmou o recebimento das perguntas, disse que as enviaria também à própria Abin, mas quase três horas depois informou que “não há perspectiva de resposta”. Crusoé também procurou diretamente o próprio Heleno e fez a seguinte indagação: “Por que a Abin pediu para suas superintendências regionais levantarem informações sobre suspeitas de desvio de verbas da saúde por governos estaduais e prefeituras?”. A reação do ministro, por mensagem de texto, foi ao mesmo tempo enigmática e surpreendente. “Não preciso responder. Na sua própria pergunta está a resposta”, escreveu Heleno. Ante a insistência do repórter, que perguntou ainda se levantamentos desse tipo são normais na Abin, o general encerrou a conversa: “Já respondi. Obrigado. Boa noite”.

O uso da Abin no jogo político da CPI coincide com o retorno de Carlos Bolsonaro à cena nacional, defendendo o endurecimento do discurso do pai diante dos sinais de que a comissão pode responsabilizá-lo pela tragédia. A interferência de Carluxo já surtiu efeito. Nesta semana, Jair Bolsonaro falou em baixar um decreto contra o isolamento social adotado por estados e municípios e voltou a atacar verbalmente a China, insinuando que o país disseminou o coronavírus pelo mundo como uma espécie de “guerra química” para se beneficiar economicamente. As declarações levaram o senador Tasso Jereissati, do PSDB, a propor a convocação de Alexandre Ramagem para que ele explique à CPI se há alguma evidência concreta que corrobore a gravidade das suspeitas lançadas por Bolsonaro – do contrário, disse o tucano, o presidente estaria fomentando um “boicote intencional” ao envio de vacinas pela China. Agora que a Abin entrou com seu aparato na batalha política da pandemia, não faltarão perguntas ao diretor-geral. Nem ao chefe dele, o outrora falante general Heleno.

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