Bolsonaro põe a Abin no jogo contra a CPI
Tão logo o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, determinou a instalação da CPI da Covid no Senado, há um mês, o presidente Jair Bolsonaro e sua tropa aliada passaram a investir na tentativa de arrastar governadores para dentro das investigações. A estratégia tinha como objetivo claro tirar o foco do Palácio do Planalto e dividir o desgaste da investigação com um número maior de políticos, especialmente os rivais do presidente. “Se não mudar a amplitude, a CPI vai simplesmente ouvir o (Eduardo) Pazuello, ouvir gente nossa, para fazer um relatório sacana”, disse Bolsonaro em conversa gravada pelo senador Jorge Kajuru, em abril. Até agora, o plano falhou. Controlada por opositores do governo, a CPI deu início nesta semana à fase de depoimentos ouvindo o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, que detalhou como Bolsonaro contrariou orientações técnicas do Ministério da Saúde e contribuiu diretamente para o agravamento da pandemia. Nesse contexto, com o presidente ainda mais emparedado, o governo recorreu à Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, para municiá-lo com as informações que Bolsonaro e seus aliados querem para tentar mudar os rumos da CPI.
Crusoé teve acesso com exclusividade à “demanda urgente” que a Abin distribuiu para agentes de inteligência em todos os estados do país, determinando uma “compilação de dados” sobre “irregularidades relacionadas à pandemia” em “âmbito estadual e municipal”. A ordem foi enviada por mensagem de WhatsApp – sim, não se espante, o serviço secreto brasileiro envia ordens de serviços por aplicativo de mensagens – na manhã da última quarta-feira, 5, um dia após o depoimento de Mandetta na CPI. O texto deixa claro o que o comando da Abin em Brasília queria de seus agentes. Destaca dois exemplos de irregularidades: “desvios de verbas” e “compras irregulares”. A pesquisa, diz ainda a mensagem, deveria ser feita “exclusivamente em fontes abertas das SEs (as superintendências estaduais da agência)“, ou seja, sem acessar os bancos de dados sigilosos. Juntamente com a mensagem, os oficiais receberam o link de uma planilha de Excel onde deveriam colocar os nomes dos estados e das cidades identificados na investigação, um título resumindo o problema detectado e a fonte da informação coletada. A Abin tinha pressa. O arquivo deveria ser preenchido até as 18 horas daquele mesmo dia.
Internamente, o pedido feito por Brasília provocou revolta entre os agentes. Primeiro, por causa do conteúdo político da “demanda urgente”, que foge do escopo de trabalho dos oficiais de inteligência – o levantamento foi solicitado justamente no momento em que o presidente da República tenta transferir, principalmente para governadores que lhe fazem oposição, a responsabilidade pela desastrosa gestão da pandemia que já matou mais de 400 mil brasileiros. Em segundo lugar, porque o trabalho solicitado, uma “compilação de dados” em “fontes abertas”, costuma ser feito por funcionários menos graduados na agência, chamados de “estagiários”. A encomenda, feita a oficiais com anos de carreira no serviço de inteligência, levantou a suspeita de que a cúpula da Abin temia que a solicitação vazasse. Na prática, afirma um agente ouvido por Crusoé, o material tem mais valia para um contra-ataque político de Bolsonaro na CPI do que para a elaboração de políticas de segurança ou de prevenção ao crime organizado e o terrorismo, que são atribuições da Abin.
Após o caso envolvendo Flávio Bolsonaro vir à tona, abriu-se uma temporada de caça às bruxas dentro da agência. No início de abril, um servidor foi alvo de uma operação de busca e apreensão por suposta participação em vazamento de dados do órgão. Segundo as investigações, ele teria repassado a jornalistas uma imagem do organograma interno da Abin. No mesmo dia em que a busca foi realizada – na ação foi apreendido até o computador da estação de trabalho do agente em Brasília –, Ramagem divulgou um vídeo no qual usava a investigação para se defender da suspeita de que pôs a estrutura oficial da agência para trabalhar em favor de interesses pessoais do clã presidencial. Segundo o diretor-geral, as investigações internas concluíram que ele e a Abin não tiveram “qualquer ligação com supostos relatórios, criados para auxiliar a defesa de senador da República”. Como Crusoé publicou, foi Ramagem quem enviou os relatórios para Flávio. Depois, eles foram encaminhados para as advogadas do senador.
Como um órgão de estado, a Abin não pode ser usada para atender a conveniências políticas dos presidentes de plantão. Por lei, a agência, que sucedeu o antigo Serviço Nacional de Informações, deve auxiliar o presidente e os ministérios com dados e análises técnicas que ajudem a tomar as melhores decisões. Entre as atividades mais corriqueiras da agência está o levantamento da ficha de indicados para cargos de confiança no governo – uma tarefa que, como a história recente mostra, nem sempre é desempenhada com o devido rigor. Os agentes do serviço secreto também atuam na produção de relatórios para a prevenção de ameaças ao país. Para isso, trabalham por vezes infiltrados, como nos filmes de espionagem, e contam com fontes que costumam ser remuneradas com a milionária verba secreta destinada anualmente à agência. Há, dentro da estrutura do órgão, divisões dedicadas, por exemplo, a monitorar grupos terroristas e facções criminosas. Da mesma forma que não pode ter sua atividade desvirtuada para fins partidários ou para atender a interesses pessoais dos governantes de plantão, a Abin não tem poderes para fazer prisões ou quebrar sigilos.
O uso da Abin no jogo político da CPI coincide com o retorno de Carlos Bolsonaro à cena nacional, defendendo o endurecimento do discurso do pai diante dos sinais de que a comissão pode responsabilizá-lo pela tragédia. A interferência de Carluxo já surtiu efeito. Nesta semana, Jair Bolsonaro falou em baixar um decreto contra o isolamento social adotado por estados e municípios e voltou a atacar verbalmente a China, insinuando que o país disseminou o coronavírus pelo mundo como uma espécie de “guerra química” para se beneficiar economicamente. As declarações levaram o senador Tasso Jereissati, do PSDB, a propor a convocação de Alexandre Ramagem para que ele explique à CPI se há alguma evidência concreta que corrobore a gravidade das suspeitas lançadas por Bolsonaro – do contrário, disse o tucano, o presidente estaria fomentando um “boicote intencional” ao envio de vacinas pela China. Agora que a Abin entrou com seu aparato na batalha política da pandemia, não faltarão perguntas ao diretor-geral. Nem ao chefe dele, o outrora falante general Heleno.
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