MarioSabino

Branca de Neve, a abusada

07.05.21

Há uma nova atração na Disney cujo tema é a história de Branca de Neve. A personagem é protagonista do primeiro desenho animado de longa-metragem. Foi lançado em 1937. O filme é magnífico. Assisti-o pela primeira vez no cinema, quando era criança. E devo ter revisto umas 20 vezes ao longo da minha vida, as derradeiras na condição de pai. Guardo uma foto de uma festa de final de ano do pré-primário, datada do remoto 1967, em que estou fantasiado de Mestre e o meu irmão do meio de Dunga, o anão mais velho e o mais novo dos sete que acolhem a princesa na sua casa na floresta.

A Branca de Neve de Walt Disney é uma adaptação da versão dos Irmãos Grimm, do início do século XIX, que cristalizaram literariamente fábulas populares alemãs transmitidas oralmente. Como ensina o professor americano Jack Zipes, no ensaio “Quem Tem Medo dos Irmãos Grimm? Socialização e Politização por meio dos Contos de Fada”, ao transpor para a literatura a ser lida por filhos alfabetizados de burgueses histórias cuja ferocidade original poderia chocá-los, já que haviam sido criadas por camponeses rudes e analfabetos para contar aos seus filhos igualmente grosseiros e iletrados, os Irmãos Grimm as atenuaram e as adaptaram ao gosto de uma clientela que também preferia ver reproduzidos os valores de uma sociedade com hierarquia de classes rígida e patriarcal. Ainda assim, como lembra a escritora italiana Nadia Terranova, em artigo para o jornal La Repubblica, na versão de Branca de Neve dos irmãos Grimm, o romantismo não era tão derramado quanto no desenho de Walt Disney: a princesa acordava do seu sono de morte, após comer a maçã envenenada, com uma sacudida mais forte do caixão carregado pelos servos do príncipe encantado, não com um beijo do belo mancebo.

Está-se falando de Branca de Neve, porque a nova atração da Disney suscitou mais uma daquelas tolices das quais o politicamente correto e o seu corolário, a cultura do cancelamento, são pródigos: como na atração do parque a cena do beijo do príncipe na princesa adormecida é reproduzida, os patrulheiros de sempre começaram a protestar contra o que seria uma apologia do abuso sexual. Afinal de contas, um homem não pode beijar uma mulher sem o seu consentimento.

Há muita estupidez nisso. A primeira delas é de interpretação de texto: Branca de Neve dormia um sono de morte, como eu disse linhas acima e todo mundo sabe sem precisar ler linha nenhuma. O príncipe, então, não tascou um beijo numa mulher viva que tirava um cochilo. Como foi colocada num caixão de vidro, também não se encontrava em coma, é bom frisar. Sono de morte é morte. Talvez o príncipe encantado pudesse ser apontado como adepto da necrofilia, mas acho que nem mesmo os patrulheiros de sempre estão dispostos a chegar a tanto. E o necrófilo, convenhamos, faria um desfavor a si mesmo ao ressuscitar uma mulher. A outra estupidez, mais geral, é que um absurdo imaginar que a história de Branca de Neve na versão da Disney tenha produzido milhões de abusadores sexuais em mais de 80 anos de existência e que ainda possa fazê-lo. Por um motivo muito simples: é ficção, estúpidos, e crianças e adultos mentalmente normais sabem que na ficção o território é livre, ao contrário do que ocorre na vida como ela deve ser. A menos que a humanidade fosse formada por psicóticos que não soubessem distinguir fantasia de realidade, não é porque uma história narra que um príncipe beijou uma princesa desacordada por obra de um feitiço, que todos se sentirão autorizados a sair beijando mulheres adormecidas por aí. Também só insanos ou criminosos achariam natural envenenar maçãs, imagino. Leis morais internalizadas, estabelecidas pela evolução das regras de convívio social cujo descumprimento é punido por artgos do código penal (que não é para deixar margem de dúvida), costumam dar conta de impulsos primitivos.

A história da Branca de Neve dos camponeses alemães era uma, a dos Irmãos Grimm era outra, a de Walt Disney passou a ser dominante, e não há nada que impeça que seja criada mais uma, na qual Branca de Neve acorde por obra de uma antídoto da Pfizer ou da Moderna — e, ao descobrir que foi beijada por um abusador metido a príncipe, processe o sujeito e o coloque na cadeia. Também vale bolar uma Bela Adormecida que tenha caído no golpe do boa noite, Cinderela. Todas as versões podem conviver e até substituir-se na tradição. Cancelá-las arbitrariamente é apagar parte da cultura humana em nome de ridicularias oriundas de anacronismos. Como diz Nadia Terranova, “as fábulas não são assinadas por um único autor, mas por coletividades inteiras. Nesse caso, portanto, não seria a fábula que deveria ser mudada, mas a sociedade. Não seria mérito ou culpa nem de paladinos revolucionários nem de surdos resistentes, seria só a vitória já ocorrida dessa mudança: não dentro da fábula, mas fora, na realidade — as fábulas são o nosso lento, inexorável espelho”.

Aos que se dispuserem a escrever uma versão moderna de Branca de Neve, sugiro atualizar o final. Ninguém vive feliz para sempre. Aliás, já no século XIX, como aponta Jack Zipes, em O Irresistível Conto de Fadas, os contadores de histórias sicilianos, não importa o quão mágica fosse a fábula, sempre traziam o ouvinte de volta à realidade, com versos como “E então eles viveram felizes e contentes, enquanto nós não podemos pagar o que vem pela frente”. Como dizia Millôr Fernandes, a vida não tem final feliz.

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