RuyGoiaba

Vá se endereçar ao Diabo

07.05.21

Antônio de Castro Lopes (1827-1901), médico e latinista, era um homem em guerra contra o que chamava de “barbarismos” — os assaltos do imperialismo linguístico, que no século XIX brasileiro ainda era mais francês do que inglês, contra a cidadela da nossa última flor do Lácio. E ele não se limitava a reclamar de galicismos e anglicismos: era tão propositivo que lançou, em 1889, um livro chamado Neologismos Indispensáveis e Barbarismos Dispensáveis. Nele, o intrépido latinista sugeria várias palavras que ele mesmo criara, derivadas do latim ou do grego, para substituir os bárbaros (no mau sentido) empréstimos de línguas estrangeiras que eram de uso corrente naquele Brasil de antanho.

Castro Lopes publicou sua obra seis anos antes de Charles Miller organizar o primeiro jogo oficial de foot-ball no Brasil; não foi ele, portanto, que sugeriu a troca desse deplorável anglicismo por “ludopédio”, embora fosse o tipo de coisa que nosso latinista assinaria embaixo. Criticado por Machado de Assis já naquele tempo, o filólogo hoje costuma ser citado como motivo de riso graças às suas sugestões que deram com os burros n’água, como “lucivelo” no lugar de “abajur” (abat-jour), “ludâmbulo” em vez de “turista” (tourist) e a sensacional “cinesíforo” para substituir o galicismo “chofer” (chauffeur). Também foi lembrado na época em que Aldo Rebelo propôs aquele risível projeto contra estrangeirismos.

(Para sermos justos, temos de admitir que o castrolopismo marcou um ou outro gol — epa, olha aí mais um anglicismo. Conseguiu emplacar pelo menos “cardápio”, embora restaurantes ainda usem o francês “menu”, e “convescote”, ainda que “piquenique” seja mais simpático e combine mais com o significado.)

Com tudo isso, e tendo plena consciência de que a assimilação de palavras estrangeiras geralmente enriquece uma língua, volta e meia me sinto meio Castro Lopes — ou, pior, meio Aldo Rebelo — toda vez que me deparo com aquilo que chamo de empréstimo burro de outro idioma. Há empréstimos necessários: imagine o trabalhão que você teria toda vez que quisesse pedir um “disco de massa com queijo e molho de tomate” só para evitar a palavra pizza. Ou se precisasse recorrer aos serviços de um “auxiliar de escritório que faz entregas em sua motocicleta”, em vez de simplesmente chamar um motoboy.

O empréstimo burro é o oposto disso: ele ignora a existência de palavras que estão em pleno uso no português brasileiro e ou dá preferência à língua original — em geral o inglês — ou, pior, traduz literalmente os falsos cognatos. Um exemplo clássico do primeiro caso (e classicamente jeca) é chamar “liquidação” de “sale” porque, sei lá, parece mais chique. Outro — hilariante, abordado pelo escritor Sérgio Rodrigues em recente coluna na Folha — é o dos donos de restaurantes que queriam “aportuguesar o take away” sem, aparentemente, ter pensado nem por um segundo na tradicionalíssima expressão “para viagem”.

O segundo caso, o dos falsos cognatos, tem abundantes exemplos. Eu adoro seguros de carro que oferecem “cobertura compreensiva”, em vez de “abrangente”: deve ser aquele seguro que compreende você como ninguém, oferece o ombro amigo, empresta o lencinho para você chorar etc. Também tem sido comum ouvir que alguém é “consistente” em vez de “coerente” — consistência é a da massa quando você faz seu péssimo pão caseiro, amigão — ou ler que Fulano “aplicou” para a universidade X em lugar de “se inscrever”.

Confesso, porém, que o que mais me dá nos nervos ultimamente é o uso burro de “endereçar”. Parece que ninguém mais enfrenta um problema, lida com ele, trata do assunto: a moçada resolveu adotar a versão literal de “to address the issue” e sair por aí ENDEREÇANDO adoidado, em um sentido que não tem nada a ver com enviar uma carta ou dirigir a palavra a alguém. Já reclamei de Luciano Huck fazendo isso, mas a praga parece estar em plena disseminação. Longe de mim querer legislar sobre o uso do idioma — o fracasso dos neologismos de Castro Lopes é bastante instrutivo —, mas contem comigo para pelo menos encher o saco de farialimers e quem mais insistir no “inglês em português”, essa coisa troncha e mal escrita que acaba não sendo nenhuma das duas línguas.

Como diria Riachão, via Cássia Eller: vão se endereçar ao Diabo.

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A GOIABICE DA SEMANA

Então Eduardo Pazuello, que é muito macho para andar sem máscara em um shopping de Manaus, meteu um atestado para dizer que não podia ir à CPI da Covid e encarar os senadores nesta semana (não podia, mas recebeu Onyx Lorenzoni “em pleno isolamento”). Segundo relatos publicados em O Globo e outros jornais, o general e ex-ministro da Saúde ficou “nervoso” com a convocação — assim como o chefe dele, que resolveu redobrar a produção de factoides e bravatas. Eu não poderia querer melhor CQD para a minha coluna da semana passada: Pazuello é um exemplo acabado do miliquismo de sunga.

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PAULO GUSTAVO (1978-2021)

Quase tudo já foi dito sobre a perda tão precoce quanto triste de Paulo Gustavo, vítima da Covid aos 42 anos. Queria lembrar dois momentos em que o humorista foi patrulhado por gente que se diz progressista: quando foi acusado de fazer blackface ao interpretar uma personagem negra, Ivonete, e quando não beijou o marido na boca na cerimônia de casamento dos dois — a segunda sem dúvida pior, por “problematizar” assunto de foro íntimo. Paulo Gustavo era ele mesmo uma bandeira — e, com seu enorme sucesso popular, fez mais pela aceitação da diversidade do que muitos militantes profissionais das boas causas. Tudo isso pelo riso, no mínimo tão legítimo quanto o confronto e não raro mais eficiente.

Descanse em paz.

Bruno Poletti/FolhapressBruno Poletti/FolhapressPaulo Gustavo, que morreu na terça (4) depois de passar quase 2 meses internado

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  1. Achei que eu era o único a me irritar com esse “endereçar”. Ouvi pela primeira o Caio Copolla falando assim num debate da CNN Brasil e achei ridículo. E o pior é que as pessoas falam desse jeito achando que estão abafando. Obrigado, adorei o artigo.

  2. "Teicauêi", acertei a mão no "take away"? Ruy, nosso football já se ajustou muito ao português: pense que "Bola na mão!" já foi "Hands!" no Brasil...

  3. Vá ao Polo de Camaçari, lá ninguém comparece a reuniões, eles "atendem"; o dinheiro não está empenhado, está "comitado", dentre outras pérolas.

  4. Aproveitando este espaço, para, quem sabe, alguém do Serviço de Atendimento ao Assinante me dar uma atenção: fiz uma assinatura e só tenho acesso ao conteúdo pelo laptop, sendo que prefiro ler pelo celular. Não consigo canal algum para tentar resolver essa questão, porque tanto pelo celular, quanto pelo laptop, sou impedida acessar o serviço de atendimento, em virtude de minha assinatura estar supostamente atrasada. Detalhe: paguei a assinatura anual à vista faz mais ou menos dois meses.

    1. Entraremos em contato com você, Yara. Desculpe-nos pelo transtorno.

  5. Ruy Goiaba, sobre o assunto "vai se endereçar ao Diabo"; ainda não entendi por que a nossa tradicional "tigela" , de repente, virou "bowl"

    1. Pois é. Temos até "cumbuca". O ditado será: "Macaco velho não põe a mão em 'bowl'".

  6. Gosto do modo como os franceses simplesmente pronunciam em francês as palavras do inglês: Míamí, Uóchintôm, Rousevélt ...

    1. E também as palavras do português, claro: "Ronaldô". Engraçado que justamente o nome do Raí, que deveriam pronunciar certo, pronunciavam Rái!

    1. Minha opinião: sou a favor do uso de Upload e Download. ...A Internet foi feita em inglês, primeiro pelos americanos fazerem frente à Cold War. ... Mas seu fundador 'civil' foi Sir Tim Berners-Lee, cientista da computação e professor do MIT. ... Vejo como pitoresco tratar site por sítio. ... Mas cada um faz do jeito que bem entender e que outros entendam ... Communication !!!

  7. Ruy, e que tal um “case” cuja diferença para a língua mãe e de apenas uma vogal? E a propaganda a Accenture no ar na TV no momento? Tem que ter tecla SAP para acompanhar!

  8. Bom mesmo foi a publicação dos GALÃS FEIOS no YouTube uma foto do Pazuelo escrita : CAG....não escrevi o restante da palavra porque sou senhora de respeito.....mas ri demais com a acertiva dos rapazes !

  9. O uso de neologismos faz parte do nosso mindset, Ruy. Fico meio down em saber q vc o desaprova. Logo vc, q considero um brother, um cara fora do establishment... Tenho um feeling de q vc precisa abrir sua mente...

    1. Esse é justamente o uso burro de termos estrangeiros que Ruy quis mostrar. E não devemos confundir neologismo com "the cow went to swamp".

  10. "farialimers?! Você não deveria usar "trabalhadores da Av. Faria Lima"? Como você não usou nem aspas, nem maiusculas, até achei que você, sem querer, também inventou um neologismo inglês.

    1. Acho que ele foi irônico mesmo sem aspas Só não sei se seria a terceira forma de pronúncia: faráia-láimers

    2. Também estranhei. Não sei se deve-se pronunciar farialaimers ou farialimers, como se lê. Mas concordo com a matéria.

  11. Uma coisa é incorporar estrangeirismos quando necessário, outra é querer substituir o idioma nativo, que me parece que é o que está acontecendo no Brasil, com incentivo da mídia inclusive - o que pra mim revela uma camuflagem da deficiência

  12. outra coisa que me implica, não é galicismo, nem nada, mas pura burrice: as pessoas esqueceram da palavra "quando" e agoram usam "onde" para tudo. Um primeiro ignorante cometeu esse erro e agora todos imitam - repórteres, políticos...

  13. Estas jequices ainda são mais comuns em gente que mora em país de língua inglesa mas não aprendem a falar a maldita por nada no mundo. Quantas vezes ouvi accent virar ‘acento’, em vez de o bom e velho sotaque. E as pronúncias, então? Miséria! Notebook ( noutibuk) é notibukiiii), que por sinal quer dizer caderno e não laptop. E por aí vai. Se a pessoa não sabe a tradução correta, por que não dizer em português e evitar pagar o mico? MS

  14. Ruy, um dos mais antigos, e com este implico muito, é o "confortável": "Fulano está muito confortável com a situação." Confortável é um colchão, uma poltrona... Onde foi parar o bom e velho "à vontade"?

  15. Excelente Mário. Sugiro que volte a escrever sobre os ditos defensores de minorias. Muita hipocrisia e mediocridade nesse meio.

  16. Parabéns, mais uma vez! E também à Crusoé; como a espero com ansiedade toda semana, inda mais em dias de grande angústia pessoal; é sempre uma esperança...

  17. ... Serei um centenário, Ruy, se chegar respirando até o fim deste maio de 2020. ... Você menciona o AlGo Rebelo ... Lembro-me (???) que o mesmo queria ressuscitar o Francês como língua oficial da diplomacia. .. Talvez esteja com memória comprometida, gagá, etc. . . Moro na capital da Província Tabajara do Pará. ... O Inglês é língua comercial oficial - bem brega mesmo. ... Edifícios são Towers. ... Tudo, tudo, tudo. ... 90% em inglês; 5% em italiano; 3 em francês e os 2% restantes em tabajarês.

    1. ... Mais: >> Top; Gourmet; iChic - de minha autoria pra espantar alguns; Barber; Beauty; Hair Stylist; Minha POSCHE; Minha MERCEDES; minha SUV enfeitada - de pobres; Carros com apelos em inglês; difícil você não ver uma imagem de perfil que não seja um(a) Selfie; etc. etc. nauseante.

    2. É verdade Heringer. Morei em Belém e uma coisa muito estranha é botar nomes francesa,italianos e ingleses em prédios e condomínios.

    1. Empoderar é de lascar. Mas "lugar de fala" é imbativel.

  18. Show!! Amo sua coluna. Critiquei no início por pura burrice da minha parte. Assumo a burrice e assumo que aprendo demais com você além das muitas gargalhadas .

  19. Usávamos SALE no lugar de LIQUIDAÇÃO porque esta última não cabia, em letras garrafais, na pequena vitrine da loja em que eu trabalhava, no Rio Sul.

    1. Bom mesmo e sem neologismos foram os GALÃS FEIOS no YouTube que no retrato do Pazuelo estamparam em letras grandes :CAG...não escrevo o resto da palavra porque sou senhora distinta. Ri demaisss..

    2. Menos mal. E "Sale" ainda é melhor que "50% Off". Aff...

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