Apuros multiplicados
À medida que a CPI da Covid avança, o governo vai se enroscando cada vez mais. Os depoimentos desta semana contribuíram para fragilizar alguns pontos cruciais da linha de defesa de Jair Bolsonaro, ao deixar claro o animus do governo contra a ciência, o inequívoco esforço em favor da cloroquina e a completa apatia em relação à aquisição de vacinas.
Nos próximos dias, o cerco deve se fechar ainda mais. Para tentar conferir materialidade às ações e omissões de Bolsonaro na trágica condução da pandemia, a CPI pretende aprovar uma série de quebras de sigilo bancário, telefônico e telemático de testemunhas consideradas estratégicas para as investigações. A medida tem potencial explosivo para o Planalto porque pode alcançar até o filho 02 do presidente, Carlos Bolsonaro. Para o senador Alessandro Vieira, do Cidadania de Sergipe, a quebra de sigilos de Carluxo pode ser mais útil até do que sua convocação para depor. “A quebra de sigilos é mais interessante porque uma figura desse perfil só iria à CPI para fazer escarcéu e teatro. Com a análise dos dados, é possível ir além. Inclusive, saber como foi sua participação nesse círculo de aconselhamento do presidente”, explica o parlamentar, fazendo referência ao cada vez mais evidente “gabinete paralelo”, criado por Bolsonaro para contornar decisões técnicas na gestão dos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.
Os integrantes da comissão ainda pretendem levantar os sigilos do sucessor de Teich, o general Eduardo Pazuello, da médica Nise Yamaguchi, uma das personagens envolvidas na tentativa de mudança da bula da cloroquina, do ex-chefe da Secretaria de Comunicação do governo Fabio Wajngarten e do presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres. Com o material em mãos, eles querem comprovar que a atuação pessoal de Bolsonaro, seja exercendo pressão sobre ministros, seja dando orientações na contramão da ciência, foi decisiva para compor o atual quadro catastrófico de mais de 425 mil mortes no país pelo coronavírus.
Foi só em 9 de novembro, porém, que Bolsonaro começou a se dar conta de que aquilo poderia ter alguma importância. Para isso, o próprio Wajngarten, segundo ele mesmo contou, teve de interromper uma reunião no gabinete presidencial com a carta em mãos, alertando para a necessidade da compra das vacinas. Na quinta-feira, Carlos Murillo, gerente-geral da Pfizer para a América Latina, disse à CPI que ao menos onze ofertas formais do laboratório americano foram feitas ao governo brasileiro. A primeira delas data de 14 de agosto de 2020 – ou seja, 28 dias antes do envio da carta ignorada por Bolsonaro, quando a farmacêutica colocou à disposição do país um contrato de 30 milhões e outro de 70 milhões de doses. Parte desses lotes poderia ter começado a ser entregue ainda em dezembro de 2020. A vacina da Pfizer só chegou efetivamente no Brasil no final de abril deste ano.
O primeiro depoimento da semana também foi embaraçoso para Bolsonaro. E as declarações que encalacraram o governo vieram de onde ele menos esperava: do, ao menos até então, amigo do presidente Antonio Barra Torres, o presidente da Anvisa. Desfiando a conduta irresponsável de Bolsonaro com impressionante desembaraço, o contra-almirante da Marinha não se constrangeu em dizer que as declarações do presidente sobre a vacinação sempre foram “contra tudo” o que a agência defende, que a cloroquina não funciona mesmo contra o coronavírus e que, sim, como havia revelado Mandetta na semana anterior, o Palácio do Planalto sediou uma reunião para tentar adequar a bula do medicamento aos devaneios de Bolsonaro. Barra Torres saiu da CPI como herói da oposição e provável novo inimigo do Palácio do Planalto.
Enquanto Bolsonaro acumula reveses na CPI e ainda se vê enredado em novos escândalos, como o do orçamento paralelo, um eufemismo para compra de apoio político, sua popularidade derrete. A mais recente pesquisa Datafolha mostrou uma rejeição ao presidente de 45% e uma aprovação de apenas 24%, a pior marca de seu mandato até aqui. Nas simulações eleitorais, ele perde para todos os potenciais candidatos em um segundo turno. Para a próxima semana é aguardado o depoimento de Pazuello – que, na verdade, tem tudo para ser um não-depoimento – e é por isso que integrantes da CPI defendem também a abertura dos sigilos do ex-ministro. Com o aval do Palácio do Planalto, a Advocacia-Geral da União entrou com um pedido de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, a fim de garantir ao general do “um manda, outro obedece” o direito de ficar calado e de não responder às perguntas dos senadores. Trechos da peça sugerem que ele teme ser preso. Em meio à tragédia que assola o país, o ex-ministro da Saúde ter medo de falar é mais uma cena lamentável do teatro do absurdo protagonizado pelo governo – e que a CPI promete não deixar completamente impune.
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