MarioSabino

FHC, Suplicy, o preço do pãozinho, o general Médici e eu

17.08.18

Volta e meia alguém me diz que não sabe como aguento escrever sobre política todos os dias. Respondo que nem eu. Aguento profissionalmente, mas não suporto existencialmente. Inclusive porque exerço a atividade de forma a cultivar velhos inimigos e fazer novos todos os dias. É tão insuportável que não me sai da cabeça o deboche que Millôr Fernandes fez da profissão: “Se deixarmos, acaba como na Rússia. Lá toda a imprensa é comunista”. Não raro, porém, onde se enxerga comunismo, há somente patetice, poltronice ou conveniências contábeis. O mesmo vale para ideologias antípodas. E tudo fica ainda mais insuportável.

Não escolhi ser jornalista de política — pelo menos não conscientemente. Mas ela entrou na minha vida desde os meus primórdios. Eu era editor das páginas de livros da Folha de S. Paulo, em 1985, primeiro emprego de verdade, quando me caiu nas mãos o livro “Segredos de Médici”, a última entrevista feita com o general Emílio Garrastazu Médici, o presidente mais linha-dura do regime militar e que havia morrido recentemente. O autor da entrevista é o jornalista Antonio Carlos Scartezini. Dei uma lida em diagonal, achei excelente e, na minha obviedade de moleque de 23 anos, achei que era o caso de Claudio Abramo resenhá-lo. Abramo havia sido diretor do jornal e pertencia ao Conselho Editorial da Folha, que passara a ser comandada por Otavio Frias Filho. No processo de modernização da Folha, entre outras imprudências, Otavio colocara um moleque de 23 anos como editor das páginas de livros. Vinte e dois, na verdade, porque eu entrara no ano anterior.

Telefonei para Abramo. Ele recusou desagradavelmente. Deu a entender que não poderia extrapolar os limites da coluna que lhe fora reservada. Como o fechamento das páginas urgia, resolvi eu mesmo resenhar o livro com a entrevista concedida pelo general Médici.

Não fazia muito tempo, havia ido ao ar um debate com os candidatos à prefeitura de São Paulo. Os principais eram Jânio Quadros, Eduardo Suplicy e Fernando Henrique Cardoso. Mediado por Boris Casoy, que fora editor-chefe da Folha e permanecia no jornal na área de política, o debate virara objeto de controvérsia porque Casoy perguntara se FHC acreditava em Deus. O candidato respondeu comicamente: “O senhor prometeu que não ia me fazer essa pergunta”, e depois balbuciou um “sim” inconvincente. Casoy também perguntou a Suplicy se ele sabia o preço do pãozinho. O candidato não sabia. Jânio Quadros venceu a eleição e, ao assumir o cargo, mandou limpar a cadeira de prefeito na qual FHC ingenuamente se sentara para fazer uma foto para a Veja São Paulo.

A entrevista com o general Médici foi lançada em livro no momento em que pegava fogo uma discussão na seção de opinião da Folha entre partidários de FHC e Suplicy e o diretor Otavio Frias Filho. Os primeiros acusaram Casoy de ter sido tendencioso ao formular as perguntas sobre Deus e o preço do pãozinho, a fim de tirar votos de FHC e Suplicy e favorecer Jânio. Otavio Frias Filho saiu em defesa de Casoy, dizendo que a crença em Deus e o preço do pãozinho eram questões importantes num país de forte religiosidade e exaurido pela inflação.

Enquanto o quiproquó corria solto, eu lia o livro. Em dado momento, Médici diz a Scartezini que, durante o tempo dele na presidência da República, a inflação ficara sob controle, comenta como o pãozinho custava caro naquele 1985 – e cita o preço com exatidão. Eu era um moleque de 23 anos, mas não um completo idiota. Médici saber o preço do pãozinho era relevante e divertido naquele momento. Relevante por motivo óbvio: o preço do pãozinho estava numa das páginas nobres da Folha e virara fogaréu no circuito USP-PUC. E divertido porque, convenha-se, desconcertava tanto os partidários de FHC e Suplicy, como quem defendia Boris Casoy. Não menos importante, eu também estava disposto — numa zona nebulosa entre o inconsciente e o consciente — a chutar o pau da barraca, porque não aguentava mais aquele pessoal vestido de cantor New Wave que povoava a Ilustrada, o caderno que abrigava as páginas de livros.

Publiquei a resenha no sábado. Escrevi apenas uma linha sobre o assunto: “A quem interessar possa, o general sabia o preço do pãozinho”. Na segunda-feira, o secretário de redação jogou sobre a minha mesa duas laudas em que Otavio Frias Filho afirmava que eu havia faltado com respeito a Boris Casoy e como a minha resenha revelava a minha falta de talento. Coloquei o cargo à disposição e fui demitido na quarta-feira, quando encontraram alguém para ocupar o meu lugar. Antes de ir embora, conversei com o diretor do jornal. Ele me disse “no hard feelings”.

Quase vinte anos mais tarde, encontrei-me com Otavio Frias Filho. No hard feelings. Ele também era uma criança na época. Demos risada sobre aquela linha que mudou a minha vida e indicou o preço a ser pago pelo pãozinho meu de cada dia.

Atualização: em 21 de agosto, pouco depois da publicação do artigo acima, Otavio Frias Filho viria a morrer, aos 61 anos, de câncer de pâncreas.

 

 

 

 

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Três crônicas absolutamente geniais do Mário Sabino. Isso é que é jornalismo. O que estamos vendo na mídia da oligarquia não tem qualificativo!

  2. Grande Mario Sabino, Excelente publicação. Parabéns pela coragem, credibilidade que confere aos textos que publica, e principalmente pela sinceridade. Ainda bem que temos gente como você publicando matérias na área política. Não desista por favor !!

  3. Coitado do Casoy, ter a dignidade defendida por meio da demissão do Mário, sem nunca ter sido de fato ofendida. Ps. Em tempo, minhas sinceras solidariedades aos dois.

  4. Como o Janio ja conhecia o FHC naquela epoca.Tanto que mandou limpar a cadeira.Depois o Lula sentou sem limpar e se borrou todo.Tantos anos depois FHC quer fazer acordo com o PT.Depois nao sabem porque o Alkmin nao sai dos 5% nas pessquisas.

  5. Gosto muito do Diogo, mas seus (dele) são por demais confusos para um leitor meio tosco como eu. Gosto dos seus (teus), pois claros e também, a meu entender, competentes! Abs.

  6. Ler textos bem escritos está cada vez mais difícil, o que não é o caso deste, e nem só de críticas e entrevistas contundentes vivem os leitores, portanto, oportuna e agradável essa coluna.

  7. Com tão pouco tempo já está embromando com estórias da vida da celebridade? Mandem esse cara embora. SABINada. Embromazil e Enrolotron.

  8. Também estava deixando de ser moleque, um pouco menos que você com ja meus 27 e primeiro filho. Muito envolvido com minha carreira na engenharia viajando muito e com o salario dolarizado. Lembro detestar Sarney, adorava Kafka, Prost, Costa e Silva, Dostoiévski. Não entendia de esquerdismo ou direitismo, no campus (USP São Carlos) não me aborreciam com isso, gostava dela e da época. Não ficaram ressentimentos, apenas comigo mesmo, com minha burrice, com minha empáfia. Continuo burro.

  9. Resumindo... o pãozinho nosso de cada dia faz bem pra uns e mal pra outros. Sempre haverão os descontentes... e a vida segue.

  10. Mario Sabino, adorei seu texto. Embora vc tenha perdido um cargo importante, colocou sua opinião de forma objetiva. Que bom q se manteve fiel ao q vc pensava... se vc ainda estivesse conduzindo a Veja hj ela seria outro padrão de revista. Ruim para ela e bom para a Crusoé e nós q somos seus assinantes!

    1. Me too, me too😊 agora com 10 letras. Parabens pelas atitudes, Mario

  11. Está aí a minha régua para medir candidatos num debate. Perguntar 1) o preço do paozinho2) o preço do litro do diesel 3) o preço da passagem de ônibus nas 3 maiores cidades brasileiras 4) o valor do salário mínimo atual 5) quantas são as alíquotas para desconto do imposto de renda em folha e qual o valor da mais baixa . Isto me daria uma ideia do candidato...ou da bolha em que ele você, distante do cidadão comum...

  12. Mário Sabino , é por esta e outras que não deixo de ler seus textos ! Sempre muito verdadeiro e sincero, parabéns pela lucidez !

  13. Excelente relato, ajuda a desnudar o pior corporativismo que existe. Nem entre os políticos existe um corporativismo tão aguerrido quanto na imprensa, que tinge todos seus participantes de vestais imparciais e incorruptíveis para ocultar o jogo podre de interesses e auto-censura que constitui a "imprensa livre". Parabéns, Mario e Diogo, pois nos brindarem com a Crusoé. Infelizmente o Antagonista virou um lixo ao contratar o PHA de certo candidato (vide área de comentários).

  14. O articulista Mario Sabino com coragem tipica do jovem desnudou a postura do personagem que engana o povo sofrido deste país com a ansia de poder que sempre caracterisou FHC Depois de velho não terá mais que existem 3 verdades sendo uma de cada lado e a do meio que só quem tem sabedoria consegue encontrar

  15. Por causa da minha profissão ( Técnico em Eletrônica) eu trabalhei numa empresa que prestava serviços para os meios de comunicações, tive contato com muitos jornalistas, até hoje fico impressionado com alguns profissionais , principalmente os mais antigos e famosos, se julgam deuses do Olimpo, suas opiniões e atitudes não podem ser contestadas de jeito nenhum, e críticas então nem pensar, deuses não erram nunca, são perfeitos.

  16. Quantos não foram barrados, até sem saber, para que o espaço fosse ocupado por gente subserviente, idiota, alinhada? Eu fui, meu pai foi, meu avô foi... Isto é a realidade nas empresas públicas, nas repartições, nas universidades, no mundo. O corporativismo vem do medo (principalmente do incompetente). Mas, felizmente, antes do medo, há no nosso espírito humano um impulso natural de crescimento. Para o Brasil crescer, falta cair esta ficha, falta coragem, não mais controle, mais leis.

  17. Muitas vezes a imprudência da juventude é compensada pela valentia assumir posições que, em aparência, estão fora do contesto. Belo relato do inicio de sua trajetória jornalística. O bom é que tanto você como a Folha de SP mudaram!

  18. Chegando como assinante agora, mas com experiência em matéria do seu tipo de narrativa. Diogo, claro, também é parte fundamental desse jogo de palavras que tanto me agrada. Excelente artigo, Mário. Minha chegada à ilha, porém, não tem hora para acabar.

  19. É por isso Senhor Mário Sabino que deve ainda pensar na sua fala, quando em seu artigo retro acontecido nesta, tenta desconstruir o homem Bolsonaro, o melhor dos candidatos atuais ao cargo de presidente do Brasil.

  20. Adoro ler o q vc escreve, adoro como vc escreve, adoro suas histórias. Já pensou em em colocá-las num livro de memórias? Obrigada por compartilha-las. Fã.

  21. Esta é a diferença entreBolsonaro do os demais candidatos: Ele como a maioria dos cidadãos que andam de carro seja na cidade, seja nas viagens em estrada sabe o que e uma multa de radar por velocidade aonde nós cheiramos industria de arrecadação governamental.Para os políticos em geral, eles vivem fora do mundo do pãozinho de cada dia.

  22. Que delícia de ler! Surpreendente... A gente começa o dia lendo jornais e vendo que está tudo igual, as mesmas conversas, do mesmo jeito, e lê esta crônica linda!!! Queremos mais.

  23. Isso só desvela o pendor do Frias Filho pelo Partido dos Trabalhadores, uma vez que era o Suplicy quem não sabia o preço do pão, nada tendo que ver com desrespeito uma sagacidade, quanto mais em relação ao Casoy, quem primeiro provocara aos políticos. ‘No hard feelings’, pelas predileções, consciente ou inconscientemente, desde que as expresse abertamente e não queira se pintar de imparcial.

  24. Marão esse é o jornalismo que irá prevalecer "o rugido no mar de mugidos"e espero francamente que prospere o suficiente para o estatismo funcional brasileiro onde o que menos importa é o povo.

  25. Belíssima crônica! Crusoé e sua equipe provam que jornalismo de qualidade pode existir ainda no Brasil, não somente "patetices, poltronices e conveniências contábeis".

  26. Também reforço o pedido para que Mário continue nos contando essas deliciosas histórias de bastidores do jornalismo brasileiro...

  27. Este é o Mário Sabino. Delicioso o pãozinho nosso de cada dia. Estas crõnicas saborosas valem ouro na dieta sadia de uma carreira na vida saudável. Parabéns por ser exemplo de correção e de estilo delicioso. O pãozinho saudável do dia a dia.

  28. Mário, espero que sua coluna continue no retorno do Diogo. Suas histórias são ótimas, ilustram bem esse nosso Brasil. No hard feelings, a política está na sua veia.

Mais notícias
Assine agora
TOPO