Um ditador em construção
Desde o dia em que o publicitário Nayib Bukele assumiu a presidência de El Salvador, em 2019, jornais do país têm sido constantemente atacados pelo governo. Um dos mais afetados é o digital El Faro. Seus jornalistas são impedidos de participar das entrevistas coletivas oficiais e de falar com integrantes do governo. Funcionários federais chegaram a ser interrogados para saber se teriam algum vínculo com repórteres do jornal. O governo de Bukele direciona sua publicidade apenas para os órgãos chapa-branca, enquanto anunciantes privados desistem de estampar publicidade no El Faro, temendo represálias. Repórteres já viram agentes do governo monitorando suas casas e registrando em fotos e vídeos os seus movimentos. Suspeita-se que telefones da redação tenham sido grampeados.
Nas redes sociais, os jornalistas têm sido alvo dos seguidores do presidente. Foram insultados e ameaçados de morte. Também houve ameaças de incendiar a sede do jornal e de explodir um carro-bomba. Em vez de repudiar a violência, Bukele compartilha os insultos e tem publicado críticas ao que chama de “jornalistas incômodos” no Twitter. Para proteger a vida e a integridade de 34 funcionários do El Faro, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos pediu ao estado de El Salvador a adoção de medidas cautelares. “Essa foi uma decisão útil que serviu para acionar o alerta. Mas, na prática, o governo continua sem garantir a nossa segurança”, diz o jornalista Sergio Arauz.
A raiva de Bukele se deve principalmente a uma reportagem que revelou um acerto entre membros do governo e criminosos do grupo conhecido como Mara Salvatrucha-13, ou simplesmente MS-13. Baseada em documentos de inteligência do próprio governo e nos registros de entrada e saída dos presídios onde ocorreram os encontros, a reportagem apontava para a existência de um acordo entre o governo e a facção. O acerto explicaria, por exemplo, a redução dos índices de criminalidade no país, uma dos principais pilares da propaganda de Bukele. Além de “acalmar” seus integrantes nas ruas, os bandidos também prometeram apoio eleitoral ao partido Novas Ideias, de Bukele. De sua parte, o governo se comprometeu a autorizar benefícios aos criminosos presos, como a autorização para a venda de frango, pizzas e doces dentro dos centros penitenciários.
Esses acordos reduzem os assassinatos temporariamente, mas fortalecem os criminosos e elevam a incidência de crimes como extorsão. “A questão do controle territorial por esses criminosos é um dos problemas mais antigos do país. A Procuradoria-Geral prometeu fazer uma investigação, mas não sabemos o que aconteceu”, diz Javier Castro de Leon, diretor da Fusades, uma organização civil da capital San Salvador.
A chance de qualquer investigação sobre algo que possa prejudicar o governo diminuiu bastante desde o início de maio. Após o partido de Bukele obter a maioria na Assembleia, os deputados destituíram o procurador-geral e cinco magistrados da Sala Constitucional da Corte Suprema. Do Brasil, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, cujo pai com frequência lança ameaças ao Supremo Tribunal Federal, elogiou a medida autoritária. “O presidente Bukele tem maioria dos parlamentares em seu apoio. Agora, o Congresso destituiu todos os ministros da Suprema Corte por interferir no Executivo, tudo constitucional”, escreveu o filho de Jair Bolsonaro.
Lá, como cá, o presidente que chegou ao poder prometendo combater a corrupção tem atuado para blindar as suspeitas que envolvem o próprio governo e pessoas de seu entorno. Recentemente, o novo procurador-geral, Rodolfo Delgado, tem se movido para atrapalhar investigações sobre contratos irregulares da área de saúde. Ao mesmo tempo, o Congresso de El Salvador, dominado pelo partido de Bukele, promulgou um decreto que impede que funcionários do governo sejam investigados por corrupção em compras feitas durante a pandemia. Além de jogar no lixo as investigações passadas, os parlamentares deram um cheque em branco para o governo realizar novas compras irregulares, desprezando os controles usuais.
Bukele também tem escalado militares aposentados para alguns cargos. Entre os postos ocupados pelos fardados, está o de chefe da Polícia Nacional Civil, que pelo regulamento não poderia ser um militar. Militares têm sido convocados para fazer segurança pública e ajudar no controle da pandemia. O presidente conseguiu dominar totalmente as Forças Armadas. Em fevereiro do ano passado, ele entrou no Congresso acompanhado de soldados para tentar forçar os deputados a aprovar uma lei autorizando a compra de armas. Em resposta à acusação de que está construindo uma ditadura a partir de suas medidas destinadas a controlar todos os poderes, Bukele diz estar construindo uma “nova história”. É assim, sempre, que nascem os autocratas.
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