Agência BrasilBolsonaro com boné do grupo de ações táticas da PF: plano de controlar corporação vem dando certo

Ele conseguiu

Como a Polícia Federal foi aparelhada por Jair Bolsonaro e por que a corporação está cada vez menos livre para investigar as altas autoridades da República
28.05.21

Em abril, Crusoé mostrou como a escolha do novo diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Maiurino, representou um passo adiante no plano de Jair Bolsonaro para dominar a corporação. De perfil político, o delegado ocupou cargos em governos estaduais por indicação de caciques evangélicos e exerceu funções de confiança em tribunais superiores. Pouco mais de um mês à frente do cargo, Maiurino quer mudar alguns procedimentos já consagrados na instituição. Ele pretende, por exemplo, retirar dos delegados a autonomia para conduzirem sozinhos investigações contra autoridades com foro privilegiado, como ministros do governo e do Judiciário. Pela proposta do novo diretor, os inquéritos destinados a apurar suspeitas sobre essas autoridades seriam “concentrados no órgão central da Polícia Federal, nos moldes da estrutura utilizada pela Procuradoria-Geral da República”. A ideia é clara: estabelecer um controle, na cúpula, sobre as investigações mais sensíveis que estiverem em curso. Como não é possível dizer isso de maneira explícita, o jeito é lapidar o argumento para parecer algo natural. Maiurino, ao defender a mudança, diz que as posições dos delegados precisam ser uma posição “institucional” da Polícia Federal.

A proposta do diretor-geral foi apresentada em um documento enviado ao Supremo Tribunal Federal, para ser anexado ao processo no qual a Procuradoria-Geral da República pedia a anulação da delação premiada do ex-governador do Rio Sérgio Cabral, que acusou o ministro Dias Toffoli, do STF, de vender sentenças no período em que integrou o Tribunal Superior Eleitoral – nesta quinta-feira, 27, o plenário virtual da corte formou maioria para invalidar o acordo de colaboração firmado pela Polícia Federal. Foi por iniciativa de um delegado, Bernardo Guidali, que a delação de Cabral avançou até o ponto de chegar a Toffoli. Guidali não consultou a direção da PF antes de enviar uma petição ao próprio Supremo propondo a abertura de uma investigação sobre o ministro. A atitude do delegado foi o gatilho para que Maiurino – que atuou na área de segurança do STF a convite do próprio Toffoli – passasse a defender as mudanças que, se implementadas, atingirão frontalmente a autonomia dos delegados nas apurações que envolvem gente graúda.

O movimento do diretor-geral em busca do controle mais efetivo das investigações mais relevantes está alinhado com os propósitos já verbalizados de maneira eloquente por Jair Bolsonaro – no ano passado, premido pelo avanço das apurações envolvendo seu filho 01, o senador Flávio Bolsonaro, o presidente assumiu seu desejo de “controlar” a corporação. A partir da aliança do governo com a ala fisiológica do Congresso e com setores do Judiciário implicados em investigações, a causa se ampliou e ganhou apoiadores importantes. Em paralelo a outras iniciativas, como a decisão da PGR de Augusto Aras de extinguir as forças-tarefas da Lava Jato, as mudanças na Polícia Federal apressaram o processo de enfraquecimento da operação que por anos aterrorizou o establishment político do país. É a nova pax brasiliense em seu esplendor.

Assembleia Legislativa de São PauloAssembleia Legislativa de São PauloMaiurino, o novo diretor da PF: ele quer diminuir a autonomia dos delegados
Para além da relação direta com as acusações de Cabral contra Toffoli, o plano da nova cúpula da PF coincidiu com a operação que mirou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, alvo de busca e apreensão por suspeita de beneficiar contrabandistas de madeira extraída ilegalmente da Amazônia. Também nesse caso, a ação policial foi conduzida por um único delegado e deflagrada sem que o alto comando da PF soubesse. As duas investigações – a do ministro do Supremo e a de Salles – se enquadram no perfil daquelas sobre as quais o diretor-geral quer ter mais controle.

Na nova Polícia Federal de Jair Bolsonaro, as investigações sobre os peixes grandes não são exatamente bem-vindas. Delegados ouvidos por Crusoé relatam que o governo tenta direcionar a corporação para o combate ao tráfico de drogas e afastá-la do rastro de políticos corruptos. Internamente, há grande incentivo à divulgação das ações contra o narcotráfico. Além disso, à diferença do que acontece com os investigadores que se lançam em investigações contra poderosos, quem toca os casos que resultam em apreensões de drogas não corre riscos de represálias. Alguns delegados traçam um paralelo com o papel desempenhado pela PF nos anos 1990 e 1980, quando a corporação se mantinha longe dos crimes de colarinho branco e se preocupava mais com apreensões de entorpecentes. “A sensação é que botaram um freio na área de corrupção, porque isso incomoda muita gente, e o status quo agora se incomoda. E para ter alguma notícia para dar, veio a questão de droga”, diz um policial experiente que não quer ser identificado.

Os números recentes dizem muito sobre essa guinada. Nos últimos anos, as prisões feitas pela corporação têm, de maneira geral, despencado. No entanto, nos últimos dois anos, houve alta de 50% no número de detidos preventivamente e temporariamente em operações contra facções do tráfico. As apreensões de drogas têm batido recordes. A maconha, de menor valor agregado, é que tem puxado esses índices. Entre 2019 e 2020, as apreensões da droga dobraram e chegaram às 546 toneladas. Já os carros-chefes do tráfico internacional e das grandes facções, como a cocaína, tiveram um pequeno decréscimo no mesmo período.

Marcos Correa/PRMarcos Correa/PRO perfil político de Anderson Torres, ministro da Justiça, contribui para o plano de Bolsonaro
Além da ênfase no combate ao tráfico, a nova PF de Jair Bolsonaro também aumentou suas investidas contra críticos do presidente. Na gestão de André Mendonça no Ministério da Justiça, mais do que dobrou o uso da Lei de Segurança Nacional para investigar autores de críticas, cartazes e até piadas sobre Bolsonaro. Em Tocantins, um sociólogo e um empresário chegaram a ser interrogados após encomendarem um outdoor em que chamavam o presidente de “pequi roído”. Um chargista que desenhou o presidente pintando uma suástica nazista também entrou na mira da PF. Todas as apurações acabaram arquivadas, mas mobilizaram delegados, agentes e escrivães que poderiam estar empenhados em casos realmente relevantes.

Nas mais importantes investigações sobre corrupção deflagradas nos últimos anos, a PF atuou como integrante de forças-tarefas comandadas pelo Ministério Público Federal. Pelas mãos do procurador-geral, Augusto Aras, escolhido por Bolsonaro, esses grupos foram asfixiados. As forças-tarefas da Lava Jato em Curitiba e no Rio foram extintas e tiveram o número de integrantes com atribuição exclusiva para as investigações reduzido ao máximo. Na Greenfield, que apura desvios em fundos de pensão e no BNDES, Aras nomeou um procurador que disse abertamente que não queria “trabalhar muito”, passou meses sem fazer uma nova diligência, e abandonou a operação. Tida pelo diretor-geral como modelo a ser replicado na PF, a atuação da PGR contribuiu, em muito, para que todas essas operações não andassem mais. Em 2016, a Operação Lava Jato em Curitiba chegou a cumprir 14 etapas, que levaram à prisão o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, os ex-ministros Antonio Palocci e Guido Mantega, executivos da OAS e da Odebrecht e o ex-governador Sérgio Cabral.

Em 2020, a Lava Jato cumpriu oito etapas, a maior parte delas voltadas a esclarecer crimes mais antigos envolvendo velhos conhecidos da operação, que já não pertenciam ao alto escalão da política. Neste ano, duas ações foram deflagradas a partir do trabalho dos procuradores de Curitiba. No Rio, a Operação E$quema S, que mirou o filho do presidente do STJ, Humberto Martins, e o advogado de Bolsonaro, Frederick Wassef, foi a única da operação que mirou figuras graúdas.

Paulo Lisboa/FolhapressPaulo Lisboa/FolhapressA prisão de Marcelo Odebrecht pela Lava Jato: operações anticorrupção estão mais raras
A intenção de Jair Bolsonaro de interferir na Polícia Federal ganhou visibilidade a partir das crises entre ele e o ex-juiz Sergio Moro, que deixou o cargo de ministro da Justiça acusando o presidente de tentar usar a corporação politicamente. Em meio à investigação sobre o caso, conduzida pelo Supremo Tribunal Federal, veio a público a íntegra da gravação da famosa reunião ministerial em que Bolsonaro declarou que iria “intervir” na PF e “ponto final”. “Eu não vou esperar f. minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira”, disse o presidente.

Desde antes daquela reunião, Bolsonaro já havia protagonizado uma desavença com Moro por querer trocar o chefe da PF no Rio de Janeiro, Ricardo Saadi. O estopim para a saída de Moro foi a decisão do presidente de exonerar o então diretor-geral Maurício Valeixo, homem de confiança do ex-ministro. Na sequência, Bolsonaro tentou nomear para o posto o também delegado Alexandre Ramagem, que havia coordenado sua equipe de segurança durante a campanha de 2018. Por considerar que a nomeação violaria princípios da “impessoalidade e da moralidade”, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu a nomeação. Ramagem acabou indo para a direção da Abin, o serviço secreto do governo – onde logo depois seria acusado de produzir documentos para ajudar na defesa de Flávio Bolsonaro. Para a cadeira vaga na Polícia Federal, o presidente acabou escolhendo o delegado Rolando de Souza, tido como um perfil técnico, que depois acabaria substituído por Paulo Maiurino, porque o presidente desejava para a posição alguém mais talhado politicamente.

A mudança se deu na sequência de uma troca importante no Ministério da Justiça, ao qual a Polícia Federal está subordinada. Saiu André Mendonça e entrou Anderson Torres, delegado da PF com larga experiência política – por muitos anos, ele foi assessor parlamentar e, até ser convocado por Bolsonaro, era secretário de Segurança no Distrito Federal. Tão logo assumiu, além do diretor-geral, Torres trocou os superintendentes da PF em São Paulo, na Bahia, em Roraima, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul e no Amazonas. O ministro chegou a declarar que requisitaria à Polícia Federal informações sobre investigações que ligavam governadores a desvios de verbas destinadas ao combate à pandemia. A afirmação foi vista como mais um sinal de que o plano de Bolsonaro de controlar a PF foi alcançado plenamente: a iniciativa do ministro estava em linha com a vontade do presidente, na berlinda com a CPI da Covid, de desviar para os chefes dos governos estaduais a inteira responsabilidade pelas desastrosas medidas de combate à pandemia no país. Do topo da hierarquia à linha de frente das investigações, a PF vai sendo colocada sob a sombra de Bolsonaro.

Com reportagem de Fabio Leite

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