RuyGoiaba

‘Muita cachaça e pouca oração’ na bandeira do Brasil já

28.05.21

Já podeis, da pátria filhos, ver um novo lema para a bandeira do Brasil — muito mais fiel à essência da brasilidade do que o 100% fantasioso “ordem e progresso” e tão bom quanto “crime ocorre nada acontece feijoada” (sem pontuação mesmo, como convém ao meme que melhor nos define) ou aquele slogan mais antigo, mas indémodable, “cuidado com bolsas e carteiras”.

Estou falando, é claro, de “muita cachaça e pouca oração”, cortesia do argentino torcedor do San Lorenzo de Almagro que manda lá no Vaticano. Vocês devem ter visto o vídeo que circulou na quarta-feira (26). Um padre brasileiro pede orações por este país tropical e Francisco responde, rindo: “Vocês não têm salvação. É muita cachaça e pouca oração” — frase dita em italiano, com exceção da “cachaça”, pronunciada em bom português brasileiro com sotaque portenho.

O povo que mora nas redes sociais, sempre ligeiro, já providenciou a bandeira com o novo lema. Outros contestaram o Bambambã da Santa Sé dizendo que o problema do Bananão é justamente o contrário, muita oração e pouca cachaça — e oferecendo como prova eloquente aquela foto de Jair Bolsonaro orando ao lado de Silas Malafaia (ao que Francisco provavelmente responderia “ninguém manda ‘cês se meterem com esses hereges aí”). Outros ainda diriam que o problema é muita cachaça, muita oração e pouca vacina. Ou pouca máscara. Ou pouco cérebro e muito coração (embora, neste governo, não dê para perceber os dois nem no microscópio do Adolfo Lutz). Ou pouca cachaça e muita corrupção.

Sejamos francos: bandeira com coisa escrita é um negócio feito pra não dar certo, e eu já devo ter dito isso mais de uma vez (Nelson Rodrigues: “A TV vive da reprise de seus filmes, eu vivo da reprise das minhas imagens”). E como o brasileiro gosta de pôr palavrinha em bandeira! Mete latim incompleto na de Minas, coloca slogan de autoajuda na do Espírito Santo (“trabalha e confia”). Mas nem todas as palavras são bem-vindas: é sabido que, ao definir os dizeres do lindo pendão da esperança, os milicos fundadores da República amputaram o lema positivista de Auguste Comte (“o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”), talvez por achar que isso de “amor” era bichice francesa.

Até hoje, a verde-e-amarela é testemunho do gosto que os brasileiros têm por importar coisas que ou não funcionam ou passaram de moda em outros países, mas seguem firmes e fortes por aqui: positivismo, espiritismo kardecista, homeopatia, cloroquina. Por sua vez, cachaça e oração — que existem em tudo quanto é canto — já seriam um passo na direção do universal. Minha preocupação é com o que chamo de psicologia reversa da bandeira: se colocar “ordem e progresso” nela deu os resultados desastrosos que deu, “muita cachaça e pouca oração” vai fazer de nós a nação mais abstêmia e carola do mundo. Até eu, que bebo pouco, não suportaria isso sem hectolitros de cachaça.

O jeito é adotar a definição do papa como lema informal e, enquanto não aparece algum bartender jesuíta para nos orientar, testarmos nós mesmos as proporções de oração e cachaça necessárias para que cada um aguente o tranco do seu dia a dia (uma dose de gim e dois pais-nossos, duas doses de vodca e três ave-marias etc.). Ou pinga pura, ou reza sem álcool: não importa. Whatever gets you through the night, como dizia John Lennon: será bem-vinda qualquer coisa que nos ajude a lidar com esta comorbidade essencial que é nascer brasileiro.

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A GOIABICE DA SEMANA

Nesta semana não houve a menor possibilidade de competir com Mayra Pinheiro, a Capitã Cloroquina, vendo um “pênis” na entrada da Fiocruz (e olha que, na CPI da Covid, Omar Aziz ainda ofereceu uma saída menos desonrosa — “eu acho que ela disse tênis” —, mas a secretária do Ministério da Saúde insistiu). Não posso reproduzir aqui, nesta revista de família, as montagens que fizeram com o logo e a fachada da Fiocruz: só digo que Mayra arrebatou de Carlos Bolsonaro o posto de Dona Bela da Escolinha do Professor Raimundo bolsonarista. O teste de Rorschach da doutora deve ser uma lou-cu-ra.

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NELSON SARGENTO (1924-2021)

O presidente de honra da Mangueira, sambista de altíssima patente, foi mais uma das vítimas da Covid no Brasil — morreu nesta quinta-feira (27), no Rio de Janeiro, aos 96 anos. Deixou pérolas como “Falso Amor Sincero” (“o nosso amor é tão bonito/ ela finge que me ama/ e eu finjo que acredito”) e inúmeras outras, como “De Boteco em Boteco”, que casa à perfeição com nosso lema informal do Brasil: “Eu bebo demais pro meu tamanho/ Arranjo brigas e sempre apanho/ Isto me faz infeliz/ Entro no boteco pra afogar a alma/ As garrafas então batem palmas/ Me embriago, elas pedem bis”. Descanse em paz.

Reprodução/Redes SociaisReprodução/Redes SociaisO sambista Nelson Sargento, que morreu nesta quinta (27) no Rio, aos 96 anos

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