MarioSabino

O humor de Deus

28.05.21

Na quarta-feira desta semana, o padre João Paulo Souto Victor, de Campina Grande, na Paraíba, abordou o papa Francisco no pátio de San Damaso, em Roma. “Santo Padre, reze por nós, brasileiros”, pediu o padre. Em gracejo que não poderia deixar de ganhar o noticiário, o papa respondeu: “Vocês não têm salvação. É muita cachaça e pouca oração”. Dizer que o papa mostrou o seu lado argentino é uma piada que já vem com o carimbo de clichê. Afirmar que ele disse uma verdade é outro lugar-comum, pontuando que clichês têm sempre um pezinho na realidade, não como todo, mas como parte.

O gracejo do papa Francisco me tirou daqui do Brasil e me transportou até Roma, a minha cidade mais querida, na qual nasceu o meu avô materno. Tenho dois amigos que me acompanham desde há muito: o Diogo, que mora em Veneza, e a Lilli, que mora em Roma. A Lilli é arquiteta e hoje é professora na Università Sapienza, onde se formou. Invariavelmente, quando saímos para jantar, ela me faz andar até Piazza Barberini, alegando que não pode me pegar nas imediações de Montecitorio, onde me hospedo, porque é área restrita a carros de residentes. Entre os romanos, Lilli deve ser a única que cumpre essa lei como uma alemã. É uma boa caminhada pela Via del Tritone até Piazza Barberini, mas, afinal de contas, lá está a Lilli, com o seu carro sempre amassado, não importa o modelo, e que parece a ser a sua segunda casa, dada a quantidade de papéis e objetos que jazem sobre os bancos e no chão. Sempre reclamo daquela sporcizia e sempre ouço que ela um dia vai limpar o carro, mas que anda ocupada demais para fazer isso. Já faz quase 40 anos que é assim.

O papa Francisco me transportou até Roma, dei uma paradinha na Lilli, em Piazza Barberini, mas o destino final era, virando à esquerda para subir a Via Veneto, onde devoro meu tiramissù preferido, o padre GianPaolo Salvini. Eu o conheci em 1996, quando fui enviado a Roma para fazer uma reportagem especial sobre o estado de saúde de João Paulo II. Salvini me recebeu para uma conversa na sede de La Civiltà Cattolica, a revista mais antiga escrita em italiano, fundada por jesuítas em 1850, e que ele dirigia. A sede de La Civiltà Cattolica é uma construção vetusta plantada na Via della Porta Pinciana, paralela a Via Veneto. Como os jesuítas são os soldados da fé, as suas construções se querem vetustas, como a de Sant’Ignazio di Loyola, em Campo Marzio, igreja de um barroco envergonhado, mas inevitavelmente esplêndido.

Salvini exibia todas as qualidades de um jesuíta (e talvez tivesse os defeitos, que não me foram dados ver). Soldado da fé exemplar, as suas armas pertenciam ao arsenal do intelecto. E, entre elas, estava o humor. Na nossa primeira conversa, ao comentar a quantidade espantosa de viagens internacionais de João Paulo II, ele disse: “Nós o chamamos de Giovanni Paolo Fuori Le Mura” (apelido que faz alusão à Basílica de San Paolo Fuori Le Mura). Em italiano, soa muito engraçado. Foi Salvini também que me ensinou quais eram os mandamentos da Cúria Romana, o caviloso aparato burocrático do Vaticano: “Não pense; se pensar, não fale; se falar, não escreva; se escrever, não publique; se publicar, não se arrependa”.

Jesuítas costumam ser piadistas — e o gracejo sobre o Brasil do jesuíta Francisco insere-se nessa tradição —, mas as tiradas do milanês inquilino de Via della Porta Pinciana refletiam refinamento incomum. Ao ouvir o papa argentino fazer a piada com os brasileiros, lembrei-me de um artigo escrito por Salvini para La Civiltà Cattolica, em 2017, quando já não estava mais à frente da revista da qual foi diretor por mais de 26 anos, o mais longevo. O artigo intitula-se O humor de Deus. O humor era assunto que o interessava tanto, que, como diretor, fez estampar na publicação jesuíta, anos antes, outro artigo no qual o autor cujo nome já não me lembro perguntava: “Jesus Cristo ria?

No seu artigo de 2017, Salvini responde a essa pergunta do articulista de maneira divertida, evocando São Francisco de Sales, que já tocara no assunto: “Numa piada, o que conta é a surpresa, o final que faz a situação dar uma reviravolta, e Jesus não podia rir disso porque já sabia sempre como a piada terminaria”. 

Você não precisa acreditar em Deus ou ser católico para apreciar o ponto de vista de Salvini a respeito do humor que não fere, mas revela:

“No título (do artigo) se faz referência ao humor de Deus. Na realidade, para falar de Deus, partimos sempre da nossa experiência humana, na qual se reflete também a ação de Deus. É indubitável que o humor é um meio nobre para ficarmos serenos. Faz parte da sabedoria, que é dom do Espírito Santo; na verdade, é o sal da vida — e da vida dos fiéis, em particular —, que a preserva de todo estrago.

A história de tantas heresias é, em boa medida, a história da perda do humor. Poderíamos acrescentar que também a perda de tantas vocações conta uma história de perda do sentido do humor. Quem não o tem leva tudo a sério e, por isso mesmo, faz de tudo uma coisa muito dramática; ou, sem desembocar no drama, ao menos complica a vida. Saindo do âmbito das experiências religiosas, um psicólogo conta que dois colegas seus, sem humor, encontram-se na rua e, após um silêncio embaraçoso, se cumprimentam; depois do encontro, ambos perguntam-se pelo resto do dia, angustiados: ‘O que ele teria querido me dizer?’”

Original nas abordagens, o que é atributo ainda mais louvável em se tratando de um padre, ele enxerga na história de São Pedro ter negado Cristo três vezes, antes de o galo cantar, como previsto pelo Mestre, um tipo de humor divino que nos coloca no nosso devido lugar: 

“Um jesuíta húngaro, Ladislaus Boros, professor em Innsbruck (na juventude, Salvini estudou na cidade austríaca), escrevia que o núcleo íntimo do humor cristão reside na força do religioso. O humor vê o terreno e o humano na sua inadequação perante a Deus; vê como tudo o que é terreno é imperfeito. Todavia, essa mesma resignação, por sua vez, é elevada na certeza de que tudo que é finito é cercado pela graça de Deus. O homem que tem humor ama o mundo, apesar da sua imperfeição — na verdade, o ama justamente nela, como faz Deus. Sabe ser grato a Deus porque vive neste mundo imperfeito.

Entre os efeitos mais importantes do humor cristão, há o de desmistificar nós mesmos e os outros. Existem momentos em quem somos tentados a nos ver em perspectivas heroicas, nos sentimos donos do mundo, capazes de desafiar e vencer todas as fraquezas. O impacto com a realidade da nossa miséria pode, então, ser dramático, e a válvula de segurança é justamente o humor, que não esconde as nossas fraquezas, mas faz que a vejamos com o olhar do Senhor. Em geral, ele se serve das criaturas ou de outros. Como acontece com o canto do galo para São Pedro.”

O humor é, ainda, antídoto ao medo, afirma Salvini, aspecto notável na história do cristianismo a partir do século XII, numa Idade Média marcada por calamidades, pestes, guerras e doenças, época na qual se começou a “ridicularizar o diabo, o que ele representava, e cuja sugestão desaparecia quando o homem de Deus ria dele. Esse era um modo de exorcizar o medo. Com o humor muitos santos exorcizaram a morte, restituindo-a ao seu sentido humano, na luz de Deus. O nosso mundo atual não é mais capaz de fazê-lo sem maneira deformada e desprovida de humanidade, fingindo que não existe morte. De dois eremitas, conta-se que, ao envelhecerem como bons vizinhos em duas grutas próximas, um dizia ao outro: ‘Caro irmão, estamos envelhecendo. Quando um de nós morrer, eu voltarei para a cidade’.”

O artigo de Salvini é temperado com passagens deliciosas, como a do conselho de um antigo monge aos infelizes. Ele dizia: “Se a sua alma está triste, vá à igreja, ajoelhe-se e reze. Se a sua alma permanece triste, vá ao seu conselheiro espiritual, sente-se aos seu pés e abra o seu coração. E se a sua alma continua triste, recolha-se à sua cela, deite-se na esteira e durma”. Salvini também relata a resposta de um bispo de uma grande cidade italiana que foi perguntado por um jornalista se ele acreditava que pudessem ocorrer aparições de Nossa Senhora nos nossos dias. O bispo foi rápido: “Certamente, Deus pode abrir uma página do sobrenatural também em um mundo secularizado como o nosso. Por exemplo, operando milagres ou mandando Nossa Senhora levar uma mensagem de esperança e de alegria aos homens ou a uma igreja em particular. Mas, por favor, não na minha diocese. Já tenho problemas suficientes”.

Tive a honra de encontrar-me mais duas vezes com Salvini: em 2005, quando fui cobrir o conclave que elegeria Bento XVI (ele me contou que a piada no Vaticano era que, uma vez morto, Joseph Ratzinger chegaria ao Céu para ensinar teologia a São Pedro, ao contrário de todos os demais papas, que foram admoestados pelo santo por ter falhado na doutrina), e em 2013, ano em que despenquei em Roma para cobrir o conclave que elegeria o papa Francisco, depois da renúncia do seu antecessor. No conclave de 2005, modestamente, antecipei que Ratzinger seria eleito, graças às análises de Salvini e do vaticanista Giancarlo Zizola, já morto. Na casa do correspondente da revista americana Time em Roma, num “conclave jornalístico”, Zizola explicou por que Ratzinger seria eleito a mim, ao anfitrião, à correspondente do jornal Le Monde e ao correspondente da revista alemã Focus, que evidentemente ficou muito satisfeito com a previsão.

Já em 2013, Salvini me disse que um jesuíta não teria chance de ser eleito. Ele acreditava, assim como quase todos em Roma, que jamais um integrante da Companhia de Jesus poderia ascender ao Trono de Pedro, porque isso daria ainda mais força a uma ordem demasiadamente vigorosa. De fato, até João Paulo II dar um corte no privilégio, os jesuítas compunham a única ordem que escolhia livremente o seu próprio superior, conhecido como “papa nero” — o nome eleito era apenas apresentado ao pontífice. Deixei, então, Jorge Bergoglio fora da lista de papáveis, apesar de a jornalista que a revista Veja despachara para a capital italiana, a fim de cobrir o conclave comigo, ter ouvido da boca de um assistente de um cardeal brasileiro que o argentino estaria bem no páreo. A inconfidência foi obtida por meio de um almoço no qual o sujeito se regalou como um fugitivo de um campo de prisioneiros. Não dei importância ao que dissera o esfomeado e o Espírito Santo pregou uma peça em mim e no padre Salvini. Deve ter sido para compensar o nosso acerto em 2005.

Ontem, depois de reler o artigo O humor de Deus, procurei saber do padre Salvini. Ele morreu em 21 de março, aos 85 anos, numa enfermaria jesuíta em Roma, vítima de leucemia. O presidente da Itália, Sergio Mattarella, o homenageou “pela profundidade das reflexões, pela sua grande cultura, pela sua capacidade de fazer entender o sentido da vida” e pela sua “ironia educada”. 

Que eu tenha sabido da morte de GianPaolo Salvini por causa de uma piada sobre o Brasil feita por um papa jesuíta, isso me faz crer num Deus bem-humorado. 

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