AlexandreSoares Silva

Pazuello nas nuvens

28.05.21

Nunca quis escrever um romance que descrevesse o momento histórico, mas se alguém quisesse fazer isso poderia escrever a tragédia de uma pessoa divertida, inteligente, gentil, que fosse se politizando aos poucos e acabasse incapaz de falar sobre qualquer outra coisa além de politica.

Conheço vários tipos assim, inclusive um que vamos chamar de o velho Tucci (estou querendo disfarçar. Seu nome real era Nuno, mas estou mudando nome para ele não vir me tirar satisfações depois.) O velho Tucci tinha um blog lá por volta de 2004, naquela época em que até o Maníaco do Parque tinha um blog. Era muito curioso sobre tudo; escrevia sobre arquitetura, cinema, literatura, ciência, e de vez em quando política; e atraía leitores muito curiosos sobre tudo. Escrevia minicontos também, muito bem escritos aliás, e era uma pessoa divertida.

Fiquei alguns anos sem saber dele – até que, dois anos atrás, ele ressurgiu na internet. E agora, sobre o que ele fala? Ora, muita coisa: política, mas não só: também política, política e, de vez em quando, para que ninguém diga que ele é monótono, política. Tudo de um jeito invariavelmente furioso e sem humor. E um pouco óbvio, porque uma vez que você sabe de que lado ele está, já sabe que opinião ele vai ter. Nunca uma surpresa.

O que restou da curiosidade dele sobre cinema, quadrinhos etc? Ele era um ser humano de três dimensões, mas me pergunto se não sentia que era um ser humano de uma dimensão só preso num corpo de três, e fez uma operação para perder duas. Se esse foi o caso, muita gente (a julgar pela internet, todo mundo) fez uma operação parecida, e são agora felizes criaturas unidimensionais.

Tem algo de triste no número de pessoas que passam o dia inteiro acompanhando a CPI da Covid. Talvez vocês tenham visto as reportagens que falam do sucesso da CPI nos canais do Telegram – o primeiro grande sucesso por lá depois do Big Brother – e mais ou menos com o mesmo nível de utilidade e inteligência do BBB, a ponto de ser chamada de Big Brother Brasilia.
Só sei que sempre que posto uma imagem bonita no Twitter – arquitetura, um jardim, uma pintura de jardim – perco pelo menos um seguidor. Sempre. Imagino a pessoa descendo pela timeline, brava com políticos e adversários políticos, vendo a imagem e pensando: “O quê? Uma IMAGEM BONITA???”, e apertando o botão de unfollow.

Outra reação a uma imagem simples, digamos se posto uma gravura de um gordo malajambrado de cartola torta do século XIX: alguém comenta que “parece o Pazuello”. Num grupo em um canto de uma pintura renascentista, digamos entre os bêbados caídos na grama durante uma orgia de faunos, alguém vê um comentador da Jovem Pan. As pessoas estão vendo políticos brasileiros nas nuvens, e logo verão CPIs nas folhas de chá.

Mas”, objeta uma voz na minha cabeça, “você não sabe que vivemos numa época horrorosa, de epidemia, de crise? Não sabe de nada? Ainda quer que falemos sobre filmes, livros, quadrinhos?” Sim, de vez em quando, pelo menos. Com um pouco de preguiça de responder a minha própria voz na cabeça, chamo Vladimir Nabokov para que faça isso por mim: “Para alguns de vocês pode parecer que, nas atuais e altamente irritantes condições mundiais, é um desperdício de energia estudar literatura e, especialmente, estudar estrutura e estilo. Mas para um certo tipo de temperamento (…) o estudo do estilo vai sempre parecer um desperdício de energia, em quaisquer circunstâncias. À parte disso, me parece que em cada mente, inclinada para o artístico ou para o prático, há sempre uma célula receptiva para as coisas que transcendem os terríveis problemas da vida cotidiana.”

Ele escreveu isso em 1953, no final das suas Lições sobre Literatura.

Mas desisti de achar que tenho alguma filosofia política. O que tenho é, por motivos não inteiramente claros pra mim (uma espécie de sabedoria natural, a.k.a. “saúde”), aversão às opiniões das classes artísticas. Isso na adolescência me levou ao conservadorismo e, quando vi que conservadorismo é um jeito filosófico de perder devagarinho, me levou agora a um limbo que é só contrarianismo mesmo.

Digo “”? Há uma beleza no contrarianismo, e se calhar é o que de mais sólido podemos ter. Nossas opiniões variam, mas a nossa vontade de irritar sobrevive à passagem das modas e dos séculos. “Fulano fala as coisas só para ser do contra”. Bom, alguém tem que fazer isso. É uma capacidade do espírito humano, e devemos medir a força de uma personalidade pela tendência a ceder ou a se opor a grupos. E é também, por acaso, uma velha, bela e tradicional arte.

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