Inteligência sem controle
Após a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, voltou a assumir papel central na vida política nacional – e não pelos seus méritos, evidentemente. Para chefiar o órgão, o presidente da República nomeou, em maio de 2019, um nome de sua mais absoluta confiança: Alexandre Ramagem, policial federal de carreira, que, por ter comandado sua equipe de segurança na campanha de 2018, conquistou rapidamente a amizade e o coração da família. Prestigiado, Ramagem virou habitué de encontros fora da agenda com o presidente e seus filhos nos palácios do Planalto e da Alvorada.
Foi exatamente a confusão entre interesse público e privado que transformou o chefe do serviço secreto brasileiro num dos protagonistas de confusões do governo. Um dos episódios mais rumorosos foi o que envolveu a produção de relatórios para ajudar a defesa de Flávio Bolsonaro nas tentativas de anular o inquérito que investiga o filho 01 do presidente pela prática de “rachid” em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio, a Alerj.
No início de maio, Ramagem voltou a frequentar o noticiário, a partir da revelação de Crusoé de que, um dia após o depoimento do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta à CPI da Covid, a Abin distribuiu uma “demanda urgente” às 26 superintendências da agência, determinando uma “compilação de dados” sobre “irregularidades relacionadas à pandemia em âmbito estadual e municipal”. Restou claro neste caso o uso político da Abin por Bolsonaro, com o objetivo de tentar mudar os rumos da CPI, totalmente desfavoráveis ao governo até agora.
Nem Ramagem nem o general Augusto Heleno Ribeiro, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, ao qual a Abin está subordinada, deram explicações convincentes até hoje sobre os rolos em que a agência está metida.
Quando era comandada pelo senador governista Nelsinho Trad, do PSD, entre 2019 e 2020, a CCAI realizou apenas uma reunião pública: em outubro de 2019, com duração de 9 minutos e 48 segundos. A audiência foi destinada à aprovação de emendas ao Orçamento de 2020, que incluiu um generoso aporte de 100 milhões de reais à Abin proposto pelo próprio Trad. Da cifra total aprovada pela CCAI, a Abin recebeu e gastou 10 milhões de reais. Parte do dinheiro – 1,1 milhão de reais – foi usada em um contrato sigiloso da agência, assinado no final do ano, para contratação de serviços de computação.
A criação da CCAI remonta a 1999, ano em que a Abin foi instituída pelo governo FHC para suceder o extinto Serviço Nacional de Informações, o braço de espionagem do regime militar. A comissão foi inspirada no modelo americano, onde o Congresso tem colegiados dessa natureza desde a década de 1970. Foi a Comissão de Inteligência do Senado dos Estados Unidos, por exemplo, que descobriu e expôs em 2012 a prática institucionalizada de torturas durante interrogatórios da CIA, na guerra ao terror – a história é contada no filme O Relatório, de 2019.
Em Washington, ao contrário do que ocorre em Brasília, a fiscalização do trabalho dos espiões funciona de fato. Só neste ano, os parlamentares americanos já realizaram 21 audiências para receber informações sobre segurança nacional e ouvir explicações de autoridades da área que atuam no Poder Executivo. Cinco desses encontros foram públicos, incluindo as sabatinas para confirmar as indicações de William Burns para chefe da CIA e Avril Haines como diretora de Segurança Nacional.
Quando os trabalhos da CCAI forem finalmente retomados, os integrantes da comissão encontrarão uma pauta extensa. Ao todo, há 25 requerimentos de informação, investigações e convocações de autoridades pendentes. Quase metade dos pedidos guarda relação com a atuação da Abin para ajudar na defesa de Flávio Bolsonaro. A comissão também pretende apurar a mobilização de oficiais da Abin, revelada por Crusoé, para levantar suspeitas contra governadores e prefeitos, a fim de desviar o foco da CPI da Covid.
Atualmente, dos doze integrantes da CCAI, apenas quatro são da base do governo. Nos bastidores, essa é uma das razões apontadas para a paralisia do colegiado. O governo sabe que, se a comissão funcionar a contento, o Palácio do Planalto pode ganhar mais uma fonte de problemas.
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