Jefferson Rudy/Agência Senado

Pizza de vírus

A CPI da Covid já identificou as barbaridades cometidas pelo governo de Jair Bolsonaro durante a pandemia. Mas, afinal, será possível chegar ao impeachment do presidente?
04.06.21

Ao longo das últimas semanas, o país tem acompanhado de maneira atenta as sessões da CPI da Covid. Devido à grande audiência, ao posicionamento extremamente passional da militância nas redes sociais e aos barracos protagonizados durante os depoimentos, houve quem comparasse as transmissões da CPI com o Big Brother Brasil – as semelhanças ficaram ainda maiores quando o relator da comissão, Renan Calheiros, resolveu fazer perguntas que, segundo ele próprio, eram “sugeridas pelos internautas”. Em meio a esse clima, para muitos dos espectadores que acompanharam os depoimentos colhidos até agora, o presidente Jair Bolsonaro deveria ser apeado do poder por ter sido negligente e cometido inúmeras barbaridades durante a pandemia. Para além dos interrogatórios intermináveis, resta para o público uma dúvida: na prática, quais podem ser os resultados concretos da CPI? É possível que a investigação resulte no impeachment do presidente?

A cúpula da comissão já elenca como fatos que tiveram a participação direta ou indireta de Bolsonaro a desqualificação das medidas preventivas – como o uso de máscaras e o distanciamento social –, o estímulo ao uso indiscriminado de medicamentos ineficazes, a propagação da perigosa tese da imunidade de rebanho e as omissões que contribuíram para o colapso no fornecimento de oxigênio para hospitais do Amazonas. Por fim, os senadores identificam as digitais do presidente no boicote à compra de vacinas em tempo hábil.

Por mais que tenha fartas provas em mãos, uma CPI não tem poder punitivo. O que ela pode fazer é reunir elementos que contribuam para uma eventual responsabilização e, assim, indiciar aqueles que considerar culpados. Caso a comissão opte pelo indiciamento do presidente da República por ter cometido crimes comuns, o relatório final é enviado para a Procuradoria-Geral da República, que pode instaurar um inquérito para investigar o que julgar necessário ou acolher as conclusões de pronto e oferecer uma acusação formal perante o Supremo Tribunal Federal. No caso concreto, a decisão sobre apresentar ou não a denúncia formal caberia ao procurador-geral da República, Augusto Aras, cujo mandato vai até 23 de setembro – ele ainda pode ser reconduzido por Bolsonaro por mais um biênio.

Jefferson Rudy/Agência SenadoJefferson Rudy/Agência SenadoA infectologista Luana Araújo fala à comissão: senadores já têm evidências robustas de que há culpa de Bolsonaro na tragédia
O sonho do presidente é que a CPI acabe no começo de agosto e que Aras, de olho na sua recondução, enterre qualquer possibilidade de investigação sobre ele. Parlamentares da oposição, no entanto, já trabalham em favor da prorrogação dos trabalhos da comissão por 90 dias. Eles entendem que Aras, após já ter renovado o mandato, poderá adotar uma postura mais independente a fim de preservar a própria imagem. Sob o comando dele, a PGR tem atuado hoje de maneira bastante alinhada com o Planalto. O procurador-geral tem postergado manifestações sobre temas indigestos para o governo e arquivado casos com potencial de importunar o presidente. Nos bastidores, os integrantes da CPI tentam pressionar Aras para que ele dê andamento a um possível pedido de investigação sobre Bolsonaro. “É a chance de ele se redimir”, diz Randolfe Rodrigues, da Rede.

Na hipótese de a comissão concluir que Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade, abre-se a possibilidade de um procedimento que independe da PGR e do Poder Judiciário. O julgamento passa a ser eminentemente político. Caberá ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, avaliar se põe em votação a abertura de um processo de impeachment. Uma vez pautado, o processo precisa do aval de 342 deputados para ser instaurado.

Pelo que foi apurado até agora, Bolsonaro pode ser implicado tanto por crime comum como por crime de responsabilidade. Na esfera dos crimes comuns, a principal acusação é a de “infração a medida sanitária preventiva”, tipo previsto no Código Penal, com pena de um a doze meses de prisão e multa. Ao encampar a tese da imunidade de rebanho, que preconiza um alto número de infectados pela doença para criar resistência natural à Covid-19 pela população, o presidente pode ter cometido, ainda, outro crime definido pelo Código Penal: “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”. Nesse caso, as penas podem chegar a 30 anos, caso a ação seja dolosa e resulte em mortes – o país caminha a passos largos para alcançar a triste marca de meio milhão de mortes causadas pelo coronavírus.

Jefferson Rudy/Agência SenadoJefferson Rudy/Agência SenadoPazuello,que acaba de ser poupado pelo Exército por ter participado de ato com Bolsonaro, é visto como cúmplice do desastre brasileiro
O desafio dos senadores, neste momento, é amarrar o relatório final de modo a mostrar a vinculação direta entre as diretrizes e ações do presidente da República à propagação do vírus. É por isso que parlamentares da oposição tentam deixar claro que a opção pela imunidade de rebanho foi, na verdade, uma política pública do governo, elaborada pelo chamado “ministério paralelo” de Bolsonaro na Saúde. Segundo um senador da CPI, o depoimento na quarta-feira, 2, da infectologista Luana Araújo, dispensada do Ministério da Saúde depois de apenas dez dias de trabalho, foi importante para reforçar “que quem manda no ministério não é Marcelo Queiroga, mas o presidente Bolsonaro”.

Entre os integrantes da CPI, há os que defendem, ainda, que Bolsonaro e o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello sejam indiciados por crimes contra a vida. Para isso, a comissão ainda pretende ouvir pesquisadores e levantar estudos que estimem a quantidade de vidas que poderiam ter sido salvas não fossem as ações do presidente no sentido de jogar contra o isolamento social e a urgente aquisição de imunizantes, como ficou claro não só durante a oitiva do atual gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, como no depoimento do presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas. O impacto político dessa decisão contribuiria para enquadrar Bolsonaro, ao mesmo tempo, por crime de responsabilidade, invocando o artigo da Constituição que trata do direito dos brasileiros à saúde.

Na história do Parlamento, não faltam exemplos de CPIs que acabaram em pizza, como a do Trabalho Escravo, enterrada pela bancada ruralista em 2013, e a da Máfia do Futebol, em 2016, que não foi adiante graças ao lobby dos parlamentares que faziam tabelinha com a CBF. Em 2007, a comissão aberta para investigar o caos na aviação do país, após o acidente com um avião da Gol, também acabou sem o indiciamento de personagens ligados à aviação civil. Duas investigações parlamentares, no entanto, a CPI do caso PC Farias e a CPI da Petrobras, contribuíram de maneira decisiva para a deposição de dois presidentes: Fernando Collor e Dilma Rousseff.

“CPI’s já levaram ou ajudaram a levar a dois impeachments. O processo de impeachment de Fernando Collor começou com uma CPI, em maio de 1992. A situação de Dilma começou a se agravar com a CPI da Petrobras, instalada em 2014”, lembra a cientista política Argelina Cheibub Figueiredo, que publicou um estudo em que analisou todas as CPIs abertas pelo Congresso, antes e depois da redemocratização.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisFila para vacinação em Curitiba: demora do governo para comprar imunizantes é um dos principais elementos a pesar contra Bolsonaro na CPI
É preciso considerar, porém, os interesses e as conveniências eleitorais dos atores envolvidos num eventual processo político. Hoje, por exemplo, o impeachment não é a alternativa mais atraente nem para o PT, que prefere concorrer contra um cambaleante Jair Bolsonaro em 2022, nem para os parlamentares do Centrão, o bloco fisiológico que tem cargos estratégicos no governo e acha que, com o presidente sob pressão, pode angariar mais nacos da máquina pública. Os integrantes da cúpula da CPI até demonstram disposição em implicar o governo, mas há sérias dúvidas se eles irão realmente até às últimas consequências. Renan Calheiros, por exemplo, é um dos que jogam afinados com a tese do “deixa sangrar” de Lula.

Nas próximas sessões, a comissão pretende analisar 19 requerimentos de quebras de sigilo bancário, fiscal, telefônico e telemático de personagens sensíveis para o governo, como o filho 02 do presidente, Carlos Bolsonaro, o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten e o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. A decisão sobre a prorrogação da CPI também deve ser tomada em breve.

Além de alargar o tempo de sangria do governo, a possível extensão dos trabalhos tem outras consequências políticas. Por exemplo: até outubro, o Congresso terá que definir as regras válidas para a eleição do ano que vem. Portanto, a CPI pode estar na reta final no exato momento em que os partidos começarão a fazer prévias e a negociar alianças, temas essenciais para os planos de reeleição de Bolsonaro. Com isso, não há dúvida de que o presidente sairá, no mínimo, desgastado das investigações. Mas para os políticos que elaboram cálculos eleitorais a partir das últimas pesquisas de intenção de voto, apeá-lo do poder pode não ser propriamente a melhor saída. Para muitos eleitores, será o suficiente para compreender a mensagem de que o esforço hercúleo da CPI só foi suficiente para amassar mais uma pizza.

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