O aloprado de Bolsonaro
De manhã cedo, Jair Bolsonaro cultiva o hábito de participar de uma conversa com uma claque de apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada. Não foi diferente na manhã de segunda-feira, 7, exceto pela gravidade da revelação. Em tom de regozijo, o presidente afirmou que um relatório do Tribunal de Contas da União, o TCU, ainda não divulgado, mostraria que metade das mortes por Covid-19 registradas no ano passado teriam, na realidade, outras causas. Bolsonaro foi além: disse que já havia repassado o documento “para três jornalistas” com quem ele “conversa” e que “à tarde” ele seria divulgado – menos pela imprensa tradicional, que, segundo ele, não iria dar trela para o material. “Está muito bem fundamentado, todo mundo vai entender, só jornalista não vai entender”, completou.
Embora tenha virado costume naturalizar atos e declarações absurdas de Bolsonaro, as palavras do presidente não só são revestidas de enorme peso institucional como geram consequências para o país e para si próprio – ou ao menos deveriam gerar. Nesse caso específico, o presidente pode ter feito ali a confissão de um crime, a depender do desenrolar da investigação já em curso pelo TCU, pela CPI da Covid no Senado e do desenlace de uma possível apuração pela Polícia Federal.
Conforme revelou Crusoé com exclusividade na terça-feira, 8, o documento ao qual o presidente se referiu, intitulado “Da possível supernotificação de óbitos causados por Covid” , foi produzido pelo auditor – agora afastado — do TCU Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques e inserido por ele num sistema interno dos servidores da corte às 18h39 do domingo, 6. Ou seja, horas antes de Bolsonaro alardear ter o material em mãos e repassado a “três jornalistas”.
Lançar uma cortina de fumaça sobre o número real de óbitos por Covid no país seria mais do que conveniente à narrativa de um presidente fustigado por uma CPI e cuja popularidade derrete. Ocorre que, embora Bolsonaro tenha tentado conferir ao relatório ares de documento oficial do TCU, o material é uma mistureba de análises pessoais do auditor com trechos de um acórdão do tribunal que versava sobre critérios para transferência de recursos aos estados, com base em dados de óbitos por Covid declarados pelas Secretarias Estaduais de Saúde. A montagem jamais foi chancelada pela corte, conforme o TCU afirmou e reiterou ao longo da semana ao menos três vezes. É aí que as coisas começam a se complicar para Bolsonaro.
O presidente pode até fingir não entender qual é a natureza da função que exerce e para a qual foi escolhido pelos eleitores, mas é de praxe que qualquer denúncia que ele receba – e ali continha uma acusação grave, qual seja: a de que secretarias estaduais poderiam estar superestimando o número de mortes por Covid – deve ser submetida, num primeiro momento, para análise da subchefia de assuntos jurídicos da Casa Civil. E, eventualmente, encaminhada ao Ministério da Justiça ou à Controladoria-Geral da União para tomada de providências cabíveis. Sob pena de o mandatário responder por crime de prevaricação.
Diante dessa paisagem enfumaçada, é fundamental que as investigações reconstituam o que ocorreu entre as 18h39 de domingo, 6, ou seja, o momento em que o auditor agora afastado do TCU inseriu o texto de sua autoria num sistema interno de auditores do tribunal, e a manhã de segunda-feira, 7, quando Bolsonaro reconheceu ter remetido o “relatório paralelo” a seus amigos na imprensa, para ser publicado “à tarde”. De acordo com o que apurou Crusoé, Bolsonaro, ao menos naquele momento com a sua claque, não bravateou. O texto realmente foi parar nas mãos de um repórter do site R7 – o portal pertence à Igreja Universal do Reino de Deus, hoje apoiadora de primeira hora do presidente. Às 14h53 daquele mesmo dia, o texto contendo trechos do relatório confeccionado pelo auditor do TCU estava no ar. O repórter autor da matéria diz que recebeu o documento de “fontes do Palácio do Planalto”.
Nesta quinta-feira, 10, a CPI da Covid aprovou requerimento pedindo o levantamento dos sigilos do auditor Alexandre Silva Marques. A quebra dos sigilos telefônico e telemático do servidor afastado do TCU contribuirá para elucidar como o documento chegou às mãos do presidente. Se ficar comprovado que Bolsonaro sabia que estava recebendo e repassando a terceiros o produto de um crime cometido pelo auditor, o presidente pode incorrer em crime de responsabilidade passível de impeachment, segundo especialistas ouvidos por Crusoé. Agora, caso ele esteja envolvido de alguma maneira na produção do relatório paralelo, além do crime de responsabilidade, Bolsonaro pode ser enquadrado no Artigo 297 do Código Penal, que trata da falsificação de documento público. A pena prevista é de dois a seis anos de reclusão e multa. Se o agente é funcionário público e comete o crime prevalecendo-se do cargo, o que é indiscutível no caso do auditor, a pena pode ser aumentada em um sexto. É preciso investigar se Alexandre Silva Marques obedeceu ordens.
No escândalo dos aloprados do PT, em 2006, petistas foram presos pela PF num hotel de São Paulo, com o equivalente a mais de 1,7 milhão de reais em espécie. O dinheiro era para comprar um dossiê falso contra José Serra, que concorria contra Aloizio Mercadante ao governo de São Paulo. À época, Lula se apressou em dizer que não tinha nada a ver com aquilo, que se tratava de “um bando de aloprados”. Bolsonaro não atribuiu uma culpa ao auditor. Nem disse que o servidor errou. Pelo contrário, confessou, como se estivesse falando sobre algo corriqueiro e absolutamente normal, que o material foi produzido por “gente que está ao meu lado”.
O perfil do servidor afastado do TCU revela que, de fato, pode haver algo de muito mais podre na história – como restou comprovado no episódio petista. O histórico mostra que Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques não é um mero funcionário da corte de contas. Ele tem costas quentes. Na verdade, quentíssimas. Há um episódio, em especial, que causa espécie. Em 2019, Alexandre Silva Marques foi convidado pelo BNDES para assumir a diretoria de compliance. A instituição é presidida por Gustavo Montezano, amigo pessoal de Eduardo Bolsonaro, filho 03 do presidente, a quem Silva Marques também seria ligado.
Crusoé apurou que Montezano fazia questão de tê-lo como quadro do banco, por se tratar de uma pessoa de sua inteira confiança. Acontece que uma resolução do TCU, de 1989, veda a cessão de servidores para atuar no Executivo, a fim de evitar conflitos de interesse. As liberações são excepcionais e devem ser autorizadas pela presidência do tribunal. Após uma sinalização de que a autorização seria negada, o próprio presidente Bolsonaro ligou para o então presidente do TCU, José Múcio Monteiro, para pressionar pela liberação do auditor. Foi exatamente o que você leu. Um presidente da República telefonou para a autoridade máxima do TCU, pedindo para que um auditor do tribunal fosse liberado para outro órgão federal. A inciativa incomum de Bolsonaro pode ajudar a puxar o fio do novelo que leva à origem da nova operação aloprada, envolvendo a confecção de um documento não oficial, feito sob medida para atender a conveniências do presidente.
Durante a semana, antes de ser anunciado o seu afastamento do TCU por 60 dias, por ordem da presidente do tribunal, Ana Arraes, razão pela qual o auditor não poderá mais acessar os sistemas do tribunal e nem mesmo entrar no prédio da corte, ele cometeu uma inconfidência que adiciona novos elementos à trama. Apesar da clara tentativa de Alexandre Silva Marques se livrar de um processo, a revelação pode ter o condão de complicá-lo ainda mais e encalacrar o presidente da República. Ele disse a seus superiores no TCU que comentou o conteúdo de suas análises pessoais com seu pai, Ricardo Silva Marques, a quem, segundo o auditor, coube entregar o texto ao presidente.
O terceiro personagem da história, como revelou Crusoé na quarta-feira, 9, é coronel da reserva e gerente executivo de Inteligência e Segurança da Petrobras, cargo que ocupa por indicação de Jair Bolsonaro desde 2019, mesmo ano em que seu filho foi indicado ao BNDES. Bolsonaro e o pai do auditor afastado do TCU nutrem relação de longa data: em 1977, foram colegas na Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman. Desde que assumiu o posto de terceiro escalão na estatal, Ricardo Silva Marques se tornou habitué da cúpula do Poder Executivo, com visitas frequentes ao gabinete de Bolsonaro. Marques chegou a ser recebido por Bolsonaro no Palácio da Alvorada em uma manhã de sexta-feira, às vésperas do Ano Novo, em 2019. Em novembro de 2020, o pai do auditor afastado foi escalado para compor um comitê do Planalto para examinar a segurança de infraestruturas críticas do país, coordenada pelo Gabinete de Segurança Institucional, comandado por Augusto Heleno.
A presidente do TCU, Ana Arraes, determinou o afastamento preventivo do auditor na quarta-feira, 9. A ministra abriu processo administrativo disciplinar contra o servidor e também pediu à Polícia Federal que investigue a conduta de Alexandre. Arraes atendeu às sugestões do corregedor do tribunal, Bruno Dantas. Em um despacho publicado na quarta, Dantas revelou a “perplexidade geral” causada pelas declarações de Bolsonaro e disse que “as revelações apontam fatos que, se comprovados, se revestem de extrema gravidade, na medida em que, além da possível infração disciplinar, atingem de maneira severa a credibilidade e a imagem institucional do Tribunal de Contas da União”. Caberá à PF investigar o caso e decidir se o indicia ou não. A dúvida é se a Polícia Federal, hoje controlada por Paulo Maiurino, ousará apontar a lupa para Bolsonaro. De todo modo, a CPI, com os sigilos do auditor aloprado em mãos, terá a obrigação de cumprir esse papel.
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