MarioSabino

Traidores do povo

18.06.21

Eu ia escrever sobre Shakespeare, mas fui interrompido outra vez pelo Brasil. O Primeiro Comando da Capital Federal correu para aprovar o texto-base de um projeto de lei que deixa integrantes seus ainda mais livres para continuar a saquear os cofres públicos. A pretexto de tipificar melhor o conceito de improbidade administrativa — ato ilegal que atenta contra a administração pública — e facilitar o trabalho dos gestores públicos, que estariam “engessados” por lei pouco clara, legitimou-se a impunidade. O procurador Deltan Dallagnol, que definiu a coisa toda como “assustadora”, resumiu a paçoca no Twitter: 

“1) Os prazos de prescrição foram encurtados de modo a garantir impunidade em casos complexos. Se a lei valesse hoje, as ações de improbidade da Lava Jato, que já tramitam há mais de 4 anos, seriam todas encerradas por prescrição, garantindo-se impunidade completa;

 2) Partidos políticos passam a ser isentos de qualquer responsabilidade por atos de improbidade, o que extinguiria as ações promovidas pela Lava Jato contra os partidos que se envolveram com corrupção, pedindo que devolvam o dinheiro desviado;

3) O prazo de investigação de atos de improbidade passa a ser de no máximo um ano, o que é inexequível quando se apuram crimes e atos complexos como aqueles de corrupção identificados na Lava Jato. Mais impunidade; 

4) As penalidades aplicadas por improbidade só poderão ser executadas após o trânsito em julgado da sentença condenatória, ou seja, após infindáveis recursos em quatro instâncias. Com os marcos prescricionais curtos, assegura-se prescrição (= impunidade); e

 5) Muitos desvios deixaram de ser improbidade, inclusive o enriquecimento ilícito do funcionário público (sua previsão foi desfigurada), contrariando frontalmente Convenções Internacionais de Combate à Corrupção que o Brasil assinou, como a da ONU e a Interamericana.” Basicamente, improbidade administrativa só será considerada como tal se for comprovado que o gestor público agiu com dolo, a fim de obter ganho “para si mesmo ou para outra pessoa ou entidade”. O “não sabia” foi institucionalizado.

Os invertebrados morais venceram, sem dúvida, com o beneplácito de um presidente eleito com a bandeira anticorrupção, e que agora, com tudo dominado pela barra-pesada, dedica-se a exterminar cidadãos, comportando-se ele próprio como vírus da Covid. Não fiquemos, no entanto, na circunstância.

O fim da picada teve começo antigo. No meio da picada, há a Constituição de 1988. Deixei de lado Shakespeare — the Invention of the Human, escrito por Harold Bloom, e peguei A Lanterna na Popa, a autobiografia de Roberto Campos (ele preferiu chamar de memórias), lançada ousadamente em volume único pela editora Topbooks e monumental tanto no peso da história e das ideias como no medido em quilos. Atravessei-a há alguns anos e me lembrava de uma lista que Roberto Campos havia feito sobre as deformações sacramentadas pela “Cidadã” que precisariam ser eliminadas. Eu tinha lembrança de que a lista era de autoria dele, mas não, é do constitucionalista Diogo de Figueiredo. Roberto Campos a citou para criticar o resultado que já se observava em 1993, cinco anos depois promulgação da Constituição, e eu a cito a partir da sua citação:

“Cinco anos passados, apesar da evidência estagflacionista da Carta de 1988, não parece infelizmente haver clima senão para uma revisão limitada. São poucas as chances de transformá-la, de uma Constituição dirigente, interventora e providencial, numa Constituição principiológica. Isso exigiria escoimá-la das cinco deformações com tanta acuidade especificadas por Diogo de Figueiredo.

— O irrealismo antiprogressista;

— O estatismo cartorial;

— O estatismo inconsequente;

— O estatismo burocrático-paternalista;

— O estatismo tecnocrata-xenófobo.”

Jair Bolsonaro se apropriou indebitamente das bandeiras da Lava Jato e fez o mesmo em relação às críticas à Constituição de 1988. Na verdade, ele é um subproduto tosco do antiprogressismo (aqui entendido no sentido liberal do termo), do cartorialismo, da inconsequência, da burocracia paternalista e da tecnocracia-xenófoba. Na verdade, o Primeiro Comando da Capital Federal também é. O estatismo vendido como a nossa salvação só fez chancelar o patrimonialismo do patronato político brasileiro, para usar a definição de Raymundo Faoro. E lá vou eu levantar outro cartapácio magnífico, Os Donos do Poder, de Faoro, que descreve o início da nossa picada, que vem lá dos tempos do Portugal monárquico. Mas não voltarei tão longe. Basta-me ir até o início do século XX, sobre o qual achei um trecho sublinhado por mim sei lá quando: 

“Um viajante norte-americano da década de 20, irritado e furioso, caricaturou, forçando as linhas e as cores, o quadro que supusera ver. ‘Existe no Brasil — clamou o profeta puritano — ‘uma massa desarticulada a que chamarei povo. É completamente analfabeta. Por isso, não tem padrão próprio de agricultura, zootecnia ou arquitetura (…) Tem uma ideia muito vaga do resto do mundo a que alguns chamam englobadamente de Paris. Não toma parte na administração pública. Desprovida de terras; em sua maioria, trabalha por conta de outrem: o patrão ou o chefe político. Existe, porém, outra classe altamente articulada a que chamarei traidores do povo. São letrados, capazes de compor frases sonoras (…) Conhecem o conforto das moradias arejadas. Sabem muito mais a respeito do resto do mundo que de seu próprio país. O governo é a missão para a qual julgam ter nascido’. No exagero das cores, filtra-se uma consequência: o povo quer a proteção do estado, parasitando-o, enquanto o estado mantém a menoridade popular, sobre ela imperando. No plano psicológico, a dualidade oscila entre a decepção e o engodo.”

O viajante americano chama-se Roy Nash e, se estivesse vivo, Raymundo Faoro talvez concluísse que ele não estava exagerando nas cores. O que o Primeiro Comando da Capital Federal demonstra neste eloquente momento da vida nacional é que a nossa relativa mobilidade social foi capaz de transformar povo em traidor do povo, dentro de um sistema político-econômico que se sustenta nos estamentos de origem portuguesa, no estado intervencionista gigantesco, construído para garantir a permanência dessa sociedade de estrutura estamental, e ainda na jurisprudência de ocasião, no rasgo desavergonhado da legislação que tenta preservar a moralidade e na reescritura de leis que permitiriam aos cidadãos controlar o que se faz com o dinheiro do seu suor, para não o ver desviado para o bolso dos donos do poder.

Que a circunstância não nos engane: o fim da picada tem origem remota. E, para ser sincero, nem mesmo é o fim da picada. Não há horizonte para o término dela. O que assistimos hoje, entre a decepção e o engodo, é resultado do que se afigura determinismo histórico. O Brasil é explicável, mas não resolúvel. Se Shakespeare inventou o humano, o Brasil edifica meticulosamente o desumano.

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