Escândalo na tragédia
Ao subir ao palco da CPI da Covid nesta sexta-feira, 25, o deputado federal Luis Miranda, do DEM, pode marcar uma inflexão no rumo das investigações que enredam Jair Bolsonaro. Para além das já gravíssimas suspeitas que pesam sobre a compra da vacina Covaxin pelo Ministério da Saúde, se o parlamentar fornecer mais detalhes sobre as irregularidades no contrato de 1,6 bilhão de reais assinado com o laboratório indiano produtor da vacina e, principalmente, reconstituir os alertas feitos a Jair Bolsonaro, será a primeira vez que o mandatário do país estará no meio de um caso escabroso de corrupção – e, o que é pior, operado em meio a uma tragédia que já ceifou a vida de mais de 500 mil brasileiros.
Como O Antagonista trouxe em primeira mão na quarta-feira, 23, o deputado bolsonarista Miranda diz ter comunicado pessoalmente ao presidente, em encontros nos dias 29 e 30 de janeiro deste ano, que a negociação estava eivada de ilicitudes e que, portanto, ele “precisaria agir”. Em entrevista exclusiva ao repórter Diego Amorim, o deputado disse que levou o caso para Bolsonaro porque “confiava” nele e entendia que combater os malfeitos era sua “bandeira”.
Apesar das advertências, o presidente avalizou a assinatura do contrato e, em 25 de fevereiro, o documento foi finalmente assinado com a nebulosa Precisa Medicamentos, contratada de maneira atípica pelo Ministério da Saúde para o fornecimento de 20 milhões de doses da vacina Covaxin, do laboratório indiano Bharat Biotech. Em qualquer governo sério do mundo, caberia ao presidente da República tomar providências para ao menos saber se a aquisição dos imunizantes poderia ser lesiva aos cofres públicos. Ou, se como advertiu o deputado, havia indícios de práticas pouco republicanas na negociação. Mas Bolsonaro teria feito ouvidos moucos para os alertas, que prosseguiram.
Em 20 de março, um sábado, Luis Miranda voltou ao presidente. Desta vez, munido de documentos destinados a comprovar o que ele havia dito anteriormente e acompanhado do irmão, o servidor do Ministério da Saúde, Luis Ricardo Fernandes Miranda. O encontro ocorreu no Palácio da Alvorada. Detalhe: o deputado diz que, por ter ligado o alarme na pasta da Saúde, seu irmão estava sendo perseguido. Para esclarecer esse e outros episódios que envolveram a compra das vacinas indianas, os dois prestarão depoimento à CPI nesta sexta-feira, 25.
O Planalto, mais uma vez, não se moveu e o presidente entabulou uma promessa. Afirmou a Miranda, nas palavras do deputado, que “ele comunicaria a Polícia Federal imediatamente”. Mas não há nenhum registro na PF de investigação ou inquérito aberto sobre a compra da vacina indiana Covaxin. Ou seja, o presidente, novamente, preferiu lavar as mãos – o que, na letra fria da lei, pode significar um grande problema para ele, já que deixar de agir mediante indícios de crime contra a administração pública configura crime.
Os sinais da leniência do governo com a corrupção se tornaram evidentes desde quando, em meados de 2019, ainda no primeiro ano de governo, Bolsonaro começou a rasgar a carta branca dada ao ex-juiz Sergio Moro, então ministro da Justiça, designou um procurador-geral da República fora da lista da lista tríplice para atuar de acordo com seus interesses à frente do Ministério Público Federal, aliou-se a figuras controversas do Judiciário nacional e não só interveio como aparelhou a PF para proteger a primeira-família, em especial seu filho 01, Flavio Bolsonaro, apanhado em um esquema de rachid na na Assembleia do Rio. Por tudo isso, nada do que vem à tona agora chega a surpreender. O que muda, sobretudo do ponto de vista político, é o possível envolvimento pessoal do presidente da República com um caso claro e manifesto de corrupção.
Na terça-feira, 22, Miranda disse em conversa no gabinete do relator da CPI, Renan Calheiros, na presença do senador Marcos Rogério, integrante da tropa de choque do governo, que teria condições, pelo que sabe e testemunhou, de “derrubar a República”. “Não tem acordo. A verdade é a minha missão”, reiterou dois dias depois nas redes sociais. Se confirmados os relatos de seu aliado, o presidente da República pode ter prevaricado – de acordo com o Código Penal, prevaricação é o ato de “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.
A empresa, com capital social de mil dólares de Cingapura e cujas ações pertencem à Biovet, uma firma indiana responsável por produzir vacinas para gado, ainda emitiu uma segunda fatura para pagamento antecipado no mesmo dia. Foi esse documento que o irmão de Luis Miranda, funcionário da Saúde, se recusou a assinar para autorizar a ordem de pagamento – por isso, segundo o parlamentar, ele foi perseguido internamente. O acordo com a Precisa excluía a possibilidade de pagamento antecipado e previa a entrega do primeiro lote com 4 milhões de vacinas no prazo de 20 dias após a assinatura. O papelório já está em poder da CPI. “Esse documento sem dúvida seria uma prova fundamental, porque o contrato com a Precisa prevê pagamento após a entrega e aí se cria uma pressa para pagamento antecipado, totalmente fora do contrato. É uma coisa gravíssima”, afirmou o senador Alessandro Vieira, integrante da comissão.
O conjunto de esforços do governo para viabilizar a operação sugere que a trama, como sublinhou Vieira, é revestida de imensa gravidade. Quando foi alertado no fim de janeiro pela primeira vez por Miranda, por exemplo, Bolsonaro já havia feito dois movimentos estratégicos em favor da compra das vacinas da Covaxin: em 6 de janeiro, o presidente editou uma medida provisória que inviabilizou naquele momento a compra da vacina da Pfizer, contrariando uma orientação da própria Casa Civil. Dois dias depois, ele enviou uma carta ao primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, dizendo que a Covaxin estaria preferencialmente entre as vacinas escolhidas pelo governo brasileiro para a imunizar a população. Quatro dias depois das denúncias de Miranda ao presidente, o deputado Ricardo Barros, ex-ministro da Saúde de Michel Temer líder do governo Bolsonaro na Câmara, apresentou uma emenda para flexibilizar a medida provisória sobre a compra de vacinas, facilitando as negociações para aquisição da Covaxin. A emenda seria aprovada em 5 de março pelo Congresso.
Nesse meio tempo, não só o contrato seria assinado, como passariam a ocorrer pressões de toda sorte, incluindo trocas de e-mails e telegramas enviados pelo embaixador do Brasil em Nova Déli ao Itamaraty, para que a aquisição fosse efetivada, já contando com o futuro aval da Anvisa para a importação das vacinas – a autorização viria em 6 de junho. Luis Ricardo, o irmão do deputado, disse que as cobranças eram atípicas: “Acontecia muita reunião, muita ligação, inclusive na sexta-feira à noite e final de semana para perguntar: ‘E aí, a empresa mandou documentação?’, ‘Como é que tá?’, ‘Cobra a empresa’”. Ele também afirmou que era pressionado constantemente pelo coronel Alex Lial, coordenador da área e homem de confiança do então ministro Eduardo Pazuello.
Além dos fios desencapados do contrato e de a Covaxin ter sido negociada em tempo recorde, chama a atenção a maneira como a compra foi feita – a vacina indiana foi a terceira a ser contratada pelo governo federal, logo depois da fórmula da AstraZeneca e da Coronavac. Nas outras aquisições, o Ministério da Saúde fechou diretamente com os fabricantes.
A Precisa Medicamentos entrou oficialmente no negócio da vacina no começo de janeiro, com a assinatura de um acordo com a fornecedora Bharat Biotech, para ser a representante da Covaxin no Brasil. O acerto foi anunciado no dia 12 de janeiro. No entanto, documentos em poder da CPI revelam que a empresa já se apresentava como mediadora do negócio ao menos desde 20 novembro do ano passado, data da primeira reunião do Ministério da Saúde para tratar do assunto.
Desde 2014, a empresa, que tem capital social de 12,9 milhões de reais declarado à Receita, é comandada por Francisco Maximiano. Ele a controla por meio de outra firma com histórico de falcatruas junto ao governo, a Global Gestão em Saúde. Foi justamente a Global que arrastou o líder do governo na Câmara e autor da emenda que abriu caminho para a compra das vacinas da Covaxin para o banco dos réus em uma ação por improbidade administrativa ajuizada pelo MP. A empresa foi contratada pelo Ministério da Saúde para fornecer medicamentos de alto custo para o SUS ao preço de 20 milhões de reais. O governo pagou o valor contratado, mas não recebeu os remédios.
As reações do governo ao longo da semana evidenciam que a cúpula do poder em Brasília está atordoada com o que o deputado disse e ainda poderá dizer. Primeiro, Bolsonaro resolveu se livrar do queimado ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que pediu demissão exatamente no mesmo dia em que o deputado expôs publicamente a trama. Na sequência, coube ao ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Onyx Lorenzoni, em tom intimidatório, dizer que os documentos apresentados pelo deputado e seu irmão eram falsos e informar que Bolsonaro, agora sim, pediria à Polícia Federal e à Procuradoria-Geral da República, para investigar a dupla por “denunciação caluniosa”. “O governo Bolsonaro vai continuar, sim, sem corrupção”, disse o ministro.
Em seu acesso de fúria, Lorenzoni deixou escapar a palavra mágica que preocupa o governo e, sobretudo, o presidente: corrupção. Bolsonaro está em pânico porque sabe que o escândalo da Covaxin e suas possíveis digitais em um caso de roubo e desvio de dinheiro público podem mudar o humor do Congresso Nacional e até embalar um até há pouco improvável processo de impeachment. As próximas semanas serão de tensão elevada em Brasília – na CPI da Covid e fora dela.
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