O dia depois do fim
O sorriso estampado no rosto dos integrantes do quinteto de jazz que anima o fim de tarde em uma calçada próxima ao Empire State Building é o retrato perfeito de que há vida pós-pandemia – algo que, infelizmente, ainda é uma realidade um tanto distante no Brasil. Depois das cenas apocalípticas do ano passado, com tendas de hospitais de campanha montadas no meio do Central Park e congeladores gigantes à espera de corpos em uma morgue improvisada na orla, com a Estátua da Liberdade ao fundo, Nova York volta a respirar ensinando ao mundo que vacinar, e vacinar com planejamento e competência, é o atalho mais curto para a volta à normalidade.
Dos 8,3 milhões de habitantes das cinco regiões da cidade, praticamente a metade já está completamente imunizada. Em Manhattan, sete em cada dez pessoas tomaram ao menos uma dose das vacinas disponíveis, as da Pfizer, da Moderna e da Janssen. Por toda Nova York é possível encontrar postos de vacinação funcionando. Para localizá-los, basta uma rápida pesquisa na tela do celular e logo aparece o mapa apontando o mais próximo. Em alguns, não é necessário nem agendar. Basta chegar e a agulhada vem em questão de minutos. No metrô, nos ônibus e em placas luminosas nas ruas, campanhas publicitárias insistem em convencer os ainda reticentes de que é preciso se imunizar.
No início deste mês, a cidade que foi o epicentro da pandemia nos Estados Unidos, com mais de 33 mil mortos pela Covid-19, conseguiu pela primeira vez, desde março de 2020, passar 24 horas sem um único óbito decorrente da doença. O número de casos confirmados caiu 95% em relação ao período mais crítico. Desde maio máscaras já não eram necessárias em lugares abertos para quem estivesse vacinado, mas na semana passada o governador Andrew Cuomo anunciou a suspensão de outras medidas restritivas. Restaurantes, lojas e outros estabelecimentos comerciais não precisam mais limitar o ingresso de público ou observar o distanciamento físico entre os clientes. Máscaras só são exigidas agora em creches, unidades de saúde e no transporte público.
Ainda há marcas da tragédia. Hotéis se readaptando à rotina, pontos comerciais abandonados no meio da crise e outros, recém-reabertos, tentando retomar a atividade – alguns, em áreas menos nobres, com produtos absurdamente empoeirados postos à mostra – remetem à ideia de uma megalópole que sobreviveu a uma catástrofe, como nos filmes. Mas meses depois de rodarem o mundo imagens deprimentes da Times Square deserta e de lojas icônicas da Quinta Avenida de portas cerradas, a economia da cidade se refaz. Há muitos sinais a confirmar o boom de crescimento esperado para depois da pandemia. Placas em vitrines com ofertas de emprego podem ser vistas em várias partes. Há obras e operários da construção civil trabalhando por todo canto, bem mais do que o normal, como se a cidade estivesse correndo para recuperar o tempo perdido.
A Broadway ainda se prepara para reabrir seus teatros. Mas o mundo do showbizz já começa a faturar novamente. No domingo, 20, a tradicional arena do Madison Square Garden reabriu com lotação máxima. Vinte mil pessoas vacinadas estavam na plateia para ver a banda de rock Foo Fighters. Sem máscaras e sem distanciamento. Outros espetáculos para grandes públicos estão marcados para os próximos meses.
Crusoé conversou, dias atrás, com uma família do Rio de Janeiro que fez uma viagem-relâmpago de quatro dias a Nova York para ser vacinada. Do aeroporto, pai, mãe e filho seguiram direto para o posto de vacinação. Os três optaram pela fórmula da Janssen, de dose única – nos Estados Unidos, a segunda dose da Pfizer é aplicada em 21 dias e a da Moderna, em 28 dias. No interior do centro de vacinação, em um cartaz gigante afixado na parede, americanos e estrangeiros de várias partes do mundo agradecem, em mensagens escritas com pincéis coloridos, a oportunidade de receber a vacina. No canto inferior, um brasileiro protestou em letras garrafais: “Bolsonaro genocida”. Bem ao lado, um colombiano inconformado seguiu na mesma toada. “Ivan Duque também”, escreveu, referindo-se ao presidente do país, igualmente criticado pela atenção dispensada ao combate à pandemia.
Nos Estados Unidos, até quando há problemas o país esbanja método e organização. No início do mês, justamente no centro de vacinação da Times Square, por cinco dias foram aplicadas doses da Pfizer impróprias para uso. As 899 pessoas que receberam essas vacinas foram alertadas logo depois, por e-mail, de que precisavam repetir o processo. Oficialmente, a explicação era a de que os frascos haviam sido armazenados no freezer por mais tempo que o necessário. Se, por um lado, a mensagem admitia uma falha grave, por outro era uma demonstração eloquente de como o processo vem sendo levado a sério no país – e de como têm funcionado os controles oficiais destinados a corrigir erros.
Mais de 178,3 milhões de pessoas – precisamente 53,7% da população – já foram vacinadas nos Estados Unidos com ao menos uma dose. Nova York é a maior vitrine da imunização no país e tem servido para puxar as demais regiões para o retorno à vida normal. O exemplo da cidade não poderia ser melhor. De compras no mercado a um simples café na esquina, situações comuns do cotidiano que haviam desaparecido da rotina das pessoas no ano passado voltaram a ser vividas com doses extras de satisfação. A retomada da normalidade dá força, mais do que nunca, à máxima de que é preciso valorizar até os hábitos mais comezinhos do dia a dia. Os museus, como o Metropolitan, estão cheios. Nos espaços públicos de lazer, do Central Park à novíssima Little Island, a “ilha” construída no lugar de um velho píer à margem do rio Hudson, a imagem de famílias inteiras aglomeradas podendo aproveitar novamente um dia de sol é a prova de que, sim, com vacina, a vida pode continuar após o longo e tenebroso inverno da pandemia.
Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.