MarioSabino

Cavaleiros inexistentes

02.07.21

Recentemente, lancei em ebook uma coletânea dos meus artigos na Crusoé, acrescidos de outros publicados em O Antagonista. Intitulado Me Odeie Pelos Motivos Certos, ele esteve disponível a nossos assinantes. Embora eu seja hoje um jornalista completamente voltado para as plataformas digitais e não sinta a menor falta de jornais e revistas impressos, confesso que, em matéria de livro, prefiro os de papel — tanto para ler, como para ser lido. A materialidade do livro é valiosa para mim. Gosto de adormecer com o peso de um livro sobre o meu peito. Gosto de escrever no meu escritório, vigiado por tantos autores ao meu redor. Gosto de me ver envelhecendo por meio das páginas escritas por mim que amarelecem na minha estante. Gosto de ir a livrarias, para espiar os lançamentos, folheá-los e sair delas com uma sacola pesada. Gosto de ser olhado de cima para baixo pelos vendedores da Livraria Gallimard, no Boulevard Raspail, em Paris, onde tive o prazer táctil de comprar as obras completas de Franz Kafka, da maravilhosa Bibliothéque de la Pléiade, em tradução revista e anotada para o francês. Gosto de ser bem tratado na pequenina Livraria Vírgula, na rua João Cachoeira, em São Paulo, capaz de providenciar livros mais rapidamente do que a Amazon. Gosto de saber que uns poucos leitores me escolhem, em meio a tantas ofertas literárias nas prateleiras.

Estou muito contente, portanto, porque o ebook Me Odeie Pelos Motivos Certos será lançado em papel pela editora Topbooks, do admirável José Mario Pereira, que montou um dos melhores catálogos do Brasil. Quando sair, terei seis livros publicados, dos quais quatro de ficção. Quando lancei o primeiro, o romance O Dia em que Matei Meu Pai, em 2004, eu sonhava chegar aos 60 anos em uma posição profissional suficientemente confortável para dedicar a maior parte do meu tempo à literatura. Quando publiquei o último, a coletânea de artigos Cartas de um Antagonista, em 2016, já estava claro para mim que o meu plano fora por água abaixo. Mas não posso reclamar da vida, embora eu esteja meio lamuriento nos últimos tempos. Quem tem o direito a lançar um livro em papel por um editora prestigiada só tem a comemorar. Ainda mais hoje, no reino do digital. Ainda mais quando se está fora de uma grande redação. Ainda mais quando se faz novos inimigos poderosos a cada dia.

Quando tive a notícia de que teria novo livro de caráter jornalístico publicado em papel, fui dar uma olhada nas minhas obras de ficção, para relembrar-me como tal. São dois romances (o outro se chama O Vício do Amor) e dois livros de contos (O Antinarciso e A Boca da Verdade). Ler-se depois de tanto tempo foi como ler outro autor. De modo geral, achei decente o que esse Mario Sabino quarentão escreveu. O Vício do Amor deveria ter sido melhor trabalhado, mas foi escrito em época bastante tumultuada da vida do escritor, se é que vale como atenuante. Não estou, contudo, fazendo balanços, inclusive porque eles não servem para nada.

O que eu gostaria de registrar aqui é o posfácio que escrevi para a edição portuguesa de O Dia em que Matei Meu Pai. Nele, resumo o que penso ser o cerne da literatura. O aspecto prazeroso para mim foi que o quase sessentão dos artiguetes para a Crusoé ainda se reconhece integralmente no quarentão que escreveu o posfácio ao romance que poderia ter iniciado uma prolífica, embora modesta, carreira literária.

Ei-lo:

“O que faz a boa literatura é a infelicidade. Ela, a infelicidade, é a roda do mundo do escritor. Os melhores romances são aqueles em que os protagonistas são movidos pela angústia, o tormento, o sofrimento. A dor de existir, enfim. Quem quiser felicidade, que vá procurá-la na indústria cultural (eu mesmo não me canso de fazê-lo) ou nos manuais ideológicos (o que já não faço). Se O Dia em que Matei Meu Pai, um romance cheio de dor, é boa literatura, isso fica ao critério do leitor. Mas devo confessar que se trata de uma opinião que não me interessa tanto assim. A literatura é um trabalho solitário do qual se aufere um prazer igualmente solitário. E efêmero, pelo menos para quem não está preocupado com a fama, como eu. Dura apenas da confecção da primeira à última página do que está escrevendo. O que vem depois não é da conta de quem assina, ou pelo menos não deveria.

Com a literatura, não quero ser ninguém. Explico: não quero descobrir quem sou ou  perscrutar a realidade circundante. Ela é uma tentativa pessoal de descobrir quem não sou e o que a realidade que me cerca não é. É uma procura pelo que há por detrás das personas que encarno nos diferentes planos do cotidiano, e também pelo que cotidiano reluta em mostrar. Uma procura à qual, evidentemente, tento dar um caráter mais universal. Nesta altura, é bem provável que o leitor esteja se perguntando se a minha ideia de literatura não é um tanto restrita, um prolongamento da psicanálise ou algo que o valha. Respondo que, no divã de um psicanalista, o paciente tenta encontrar a melhor maneira de adequar-se a si próprio, ao que se delineia como sua essência, seja conformando-se às suas personas ou buscando uma outra máscara que o vista melhor. Com a literatura — pelo menos, a minha literatura —, o risco é maior. Posso (podemos, caso haja leitor) descobrir que por detrás do que pensamos ser essência não há nada, absolutamente nada. Que ela própria, a essência, é pura aparência. Que somos homens sem face, cavaleiros inexistentes.”

No nosso atual momento nacional, extrapolo e acrescento que podemos descobrir que somos cavaleiros inexistentes lutando em defesa de donzela igualmente imaginária — o Brasil.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO