Exército americanoSoldado em helicóptero americano no Afeganistão: Talibã hoje domina metade dos distritos

A retirada americana

Ao deixar o Afeganistão, os EUA de Joe Biden mostram que, em vez de se envolver em guerras caras e intermináveis em países distantes, preferem usar recursos para turbinar a economia e gerar empregos
09.07.21

A mais longa guerra americana está acabando. Após o anúncio feito pelo presidente Joe Biden em abril, militares deixaram a base aérea de Bagram, no Afeganistão, na noite de 2 de julho. Assim que a energia elétrica do complexo foi cortada, ladrões invadiram o local, onde milhares de automóveis e veículos blindados estavam estacionados, para roubar o que pudessem. A primeira suspeita foi de que se tratava de membros do grupo terrorista islâmico Talibã. Duas horas depois, os intrusos foram expulsos por soldados afegãos. A preocupação com o Talibã é intensa, pois a organização tem expandido seu território e hoje controla metade dos 400 distritos do país. Fontes de inteligência americana afirmam que o Talibã poderia tomar o poder seis meses após a completa saída americana, marcada para 31 de agosto. Mesmo com essa previsão sombria, Biden não faz qualquer menção de reconsiderar sua decisão. Com sua “política externa para a classe média”, o presidente americano segue o caminho de seus antecessores Barack Obama e Donald Trump. Em vez de se embrenhar em guerras caras e intermináveis em países distantes, o governo americano prefere gastar para recuperar a economia e gerar empregos.

O avanço do Talibã é rápido e seus soldados são movidos pelo fanatismo. A luta armada para eles é a jihad, que tem por objetivo o de reinstalar o Emirado Islâmico do Afeganistão. Esse regime totalitário, inaugurado em 1996, permitiu que organizações internacionais como a Al Qaeda treinassem seus homens e planejassem ataques contra outros países. Após os atentados terroristas às Torres Gêmeas de Nova York em 11 de setembro de 2001, o Talibã foi apeado por forças dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan. A situação de agora é totalmente oposta. O moral entre os talibãs está nas alturas, e eles se regozijam de terem vencido a guerra contra os Estados Unidos no Afeganistão. Com medo deles, os soldados do governo estão fugindo sem lutar, deixando veículos blindados e munições para seus inimigos usarem à vontade. Em poucas semanas, cerca de 1,4 mil militares afegãos correram para o Tajiquistão, um país vizinho, em busca de abrigo. Até os americanos parecem apavorados. Na quinta, 8, Biden antecipou a retirada do dia 11 de setembro para o final de agosto, argumentando que “velocidade é segurança”.

Nos distritos que caem sob domínio do Talibã, aparelhos de som têm sido destruídos. Homens são obrigados a deixar a barba crescer. Quem se recusa é espancado. Funcionários do governo são presos e levados a julgamento em tribunais clandestinos. Mulheres precisam usar o hijab, cobrindo o cabelo, e só podem sair de casa à noite sob custódia masculina. Muitas temem que não poderão mais trabalhar fora de casa, como acontecia nos anos 1990. Em algumas escolas, meninas mais velhas foram proibidas de assistir às aulas. Disciplinas como artes e cidadania foram eliminadas. Muitas mulheres se mudaram com suas famílias para a capital Cabul, com medo de perder os direitos sociais conquistados nas últimas duas décadas. Caso o Talibã chegue perto demais, elas podem fugir para o aeroporto. Se a situação de segurança continuar a piorar, é provável que ocorra um êxodo de refugiados para o Paquistão, para o Irã, para a Turquia e para outros países europeus. Muitos moradores das cidades têm medo do Talibã”, diz Matthew Nelson, professor de política e islamismo na Universidade de Melbourne, na Austrália.

OtanOtanMeninas em escola: retorno do Talibã pode acabar com esta cena
O movimento de sair do Afeganistão já havia sido esboçado por Obama, que em 2009 anunciou a meta de treinar e equipar as tropas afegãs e cair fora em julho de 2011. Não funcionou. Trump iniciou conversas de paz com o Talibã no Catar no ano passado e esperava concluir a saída em um possível segundo mandato, o que lhe foi negado nas urnas. Biden, que nunca se entusiasmou com a ideia de transformar o Afeganistão em uma democracia, não se desviou da trajetória dos seus antecessores. Hoje, três em quatro americanos apoiam o retorno dos militares. Para os presidentes americanos, o Afeganistão só seria uma encrenca de novo se terroristas da Al Qaeda, que odeiam os Estados Unidos, encontrassem refúgio em suas montanhas e voltassem a atrair seguidores. Como sobraram poucos deles no país, ficou para os afegãos a tarefa de conter o Talibã, cujas ambições são locais.

Essa certamente foi uma decisão dolorosa em Washington, porque as consequências para a população afegã serão muito negativas. Haverá derramamento de sangue e muito do progresso obtido na área de direitos para as mulheres será perdido”, diz Charles Kupchan, pesquisador do Council on Foreign Relations e autor do livro Isolacionismo, a História dos Esforços Americanos para se Proteger do Mundo (em tradução livre). “A questão é que Biden está voltado para as preocupações da classe média americana, o que implica investimentos para a recuperação pós-pandemia, gastos em infraestrutura, em atendimento de saúde e em tecnologia. Esta é a hora de construir escolas no Alabama, não no Afeganistão.”

ReproduçãoReproduçãoMembros do Talibã em negociações de paz no Catar
Nas falas direcionadas ao exterior, Biden se declara defensor de uma política externa multilateral, que respeita os organismos internacionais e é capaz de aglutinar países aliados e democráticos em torno de objetivos comuns. Ao se encontrar com líderes europeus, Biden tem frisado que “Os Estados Unidos estão de volta”. À primeira vista, sua postura seria oposta à trumpista “América em primeiro lugar”. Mas a retirada de tropas do Afeganistão mostra que Biden pode executar políticas muito parecidas com as de Trump. Na verdade, Biden está pensando em como as decisões diplomáticas terão impacto na vida do americano médio, que não quer saber de guerras longínquas.

Nessa nova perspectiva, a chance de novos acordos de comércio diminui, uma vez que a importação de produtos mais baratos poderia ameaçar vagas de empregos de americanos. Um sintoma disso foi a escolha de Katherine Tai, que é próxima dos sindicatos, para o cargo de representante de comércio.Em vez de novos acordos comerciais, provavelmente veremos mais ataques contra a China, com acusações de que o país usa práticas ilegais na competição internacional”, diz Kupchan, que trabalhou no Conselho de Segurança Nacional nos governos de Bill Clinton e de Barack Obama.

Ao bradar contra a concorrência desleal da China e priorizar a classe média, Biden também demonstra ter faro eleitoral. Em 2016, a democrata Hillary Clinton perdeu as eleições para o republicano Donald Trump nos estados-pêndulo da Pensilvânia, Michigan e Wisconsin. Nesses lugares, os homens brancos de classe média e sem diploma universitário aderiram às promessas de Trump de que ele traria de volta as fábricas que se mudaram para outros países. Biden sabe que, se não agradar a esse público, Trump poderá encantá-los novamente. “Biden está direcionando suas políticas, internas e externas, para as pessoas que Trump tinha atraído com seu slogan de ‘América em primeiro lugar’. Ao cortejá-las, o democrata também está pensando na eleição de 2024”, diz o professor de relações internacionais Georg Lofflmann, da Universidade de Warwick. Longe dessa disputa política, a população do Afeganistão sai perdendo com a volta do pesadelo do Talibã.

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