RuyGoiaba

A nova turnê dos Românticos de Cuba

16.07.21

Eu ia começar esta coluna com um dos meus trechos favoritos do Machado de Assis, que está no Quincas Borba: “O melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão”. Em vez disso, vou voltar uns 35 anos no tempo, para o melhor exemplo da expressão “a contragosto” que presenciei em toda a vida. Foi em uma aula de geografia no ensino médio, quando — pressionada pelos alunos — minha professora admitiu, com a maior relutância DO MUNDO, que na Alemanha da época do Muro de Berlim as pessoas tentavam fugir do lado oriental para o ocidental, do comunismo para o capitalismo, daquela sociedade lindamente igualitária para o malvado mundo regido pela força da grana que ergue e destrói coisas belas. E algumas dessas pessoas morriam na fuga.

O Muro de Berlim veio abaixo faz décadas, e hoje sabemos bem como era a vida lindamente igualitária na Alemanha Oriental, graças a inúmeros testemunhos e a filmes de ficção (mas nem tanto) como A Vida dos Outros e Adeus, Lênin!. Mas a esquerda, ou parte considerável dela, continua igualzinha à minha professora de geografia do colégio no século passado. Ou igualzinha à Orquestra Românticos de Cuba, tocando o mesmo repertório de chá-chá-chás desde a década de 1950.

Bastou explodirem os novos protestos em Havana e outras cidades para que petistas e assemelhados — que dizem odiar o autoritarismo de Jair Bolsonaro, mas não estão a fim de se mexer muito por seu impeachment — expressassem todo o seu amor por aquela ditadura de seis décadas. E, claro, usando aquela desculpa mais surrada e embolorada que uma apostila de cursinho dos anos 1980: a culpa é do embargo, e os manifestantes são fantoches dos americanos. Para Lula, Cuba seria uma Holanda se não fosse o bloqueio (e, veja bem, ele estava falando de IDH, não do consumo per capita de maconha). E Manuela D’Ávila, ex-candidata à Vice-Presidência, afirmou defender a liberdade “em todos os lugares do mundo, MAS…”. É como quem diz “não sou racista, MAS”: você já sabe que o que vem depois da adversativa é racismo. Ou defesa de ditaduras.

Uma das melhores pérolas veio do Global Times, jornal chinês que é um braço do Diário do Povo, órgão oficial do PC da China, num editorial comentado pelo site oficial do PT: “O texto aponta que, de fato, Cuba vive ‘graves dificuldades econômicas’, incluindo falta de alimentos e remédios e frequentes cortes de energia, somadas à piora da pandemia de Covid-19. ‘Mas ninguém acredita que, naturalmente, o descontentamento popular tenha imediatamente levado a protestos políticos’”. Pois é: o país está um horror, não tem comida, remédio nem luz, e a pandemia só piorou as coisas. Mas desde quando, companheiros, isso justifica os cubanos protestarem por iniciativa própria? Aí tem: só podem ser os ianques embargando de um lado e insuflando os protestos do outro, para depor o maravilhoso governo legado pelos Castro Bros. (Note que os cubanos parecem nunca ter vontade própria: são tratados ora como animais no zoológico do grande experimento utópico socialista, ora como gente manipulável pelos EUA.)

O embargo americano, de fato, não serve para nada, a não ser para fornecer desculpas para essa esquerda que insiste em morrer abraçada ao cadáver de Fidel Castro. Hoje, nos casos em que não há interesses envolvidos — como o financiamento do governo petista ao porto de Mariel ou a parceria entre cubanos e chineses nas votações da ONU —, o amor pelo regime cubano só se explica como fetiche, parafilia, atração fatal. E manifestações como as de Lula e Manuela ainda levantam uma bola redonda para o bolsonarismo, acossado pela CPI da Covid e pelo derretimento da popularidade do Micto, sair das cordas e cortar: “Esses aí chamam a gente de autoritário, mas olha só quem eles ‘tão apoiando!”.

A verdade, amigos, é que no outro extremo da ferradura ideológica, incluindo o mercado financeiro, há uma turminha que também não veria problema em viver sob a ditadura de um Pinochet ou um Videla, desde que ela “entregasse as reformas necessárias” e “mantivesse um ambiente econômico estável”. Aqui retornamos à citação do Machado com que iniciei o texto: nas duas pontas da ferradura, e até mesmo fora delas, ninguém gosta de democracia. E só acham o autoritarismo ruim quando acontece de não terem o cabo do chicote na mão.

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A GOIABICE DA SEMANA

Na semana passada, o ex-diretor de logística do Ministério da Saúde disse à CPI da Covid que estava lá de boas na happy hour, tomando chope no shopping, quando um PM apareceu do nada e disse “e aí, tu quer 400 milhão de vacina”? Nesta semana, o tal “CEO” da empresa que supostamente intermediava a venda  foi à comissão para dizer que não era CEO, só vendedor; que tinha 400 milhões de doses da AstraZeneca MAIS 200 milhões da Janssen para vender, o que daria para vacinar quase o Brasil inteiro três vezes; e que havia outro “representante” tentando vender vacina ao governo, não se sabe se as mesmas ou outras.

Como diria Oswald de Andrade, o Brasil é uma república federativa cheia de árvores e de gente vendendo vacina. Aliás, já sugiro ao Houaiss que na próxima edição inclua “vendedor de vacina”, como sinônimo, no verbete “picareta”.

Cristiano Carvalho, o não-CEO da Davati: só faltou cantar ‘yes, nós temos vacinas’

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