Dinheiro para ONGs de fachada
Como se não bastassem os recentes escândalos envolvendo a compra de vacinas, o governo Jair Bolsonaro adotou um dos modos mais prosaicos e clássicos de desvio de dinheiro público: o abastecimento de ONGs de fachada a fim de beneficiar aliados e até mesmo funcionários estrategicamente aboletados em ministérios. Nas últimas semanas, Crusoé seguiu o rastro dessas organizações não governamentais. Chegou a nove entidades sem fins lucrativos que só existem no papel ou que funcionam com estruturas muito precárias e em desconformidade com sua atividade fim, mas que receberam do governo ou tiveram empenhados mais de 17 milhões de reais – e isso, é claro, é apenas uma amostra do problema, que deve ser investigado a fundo pelos órgãos de fiscalização. O dinheiro vai parar no caixa das entidades por meio de emendas de parlamentares aliados ao governo. As emendas, por sua vez, são chanceladas pelos ministérios. Constituídas apenas de um CNPJ e um endereço, parte dessas entidades não prestam qualquer serviço e, para receber dinheiro público, apresentam prestações de contas fraudulentas que são aprovadas sem qualquer critério pelo governo. Por serem apadrinhadas por políticos bolsonaristas, essas ONGs têm o dinheiro empenhado em suas contas sem qualquer fiscalização ou controle mais rígido, expediente que ficou bastante conhecido durante as gestões petistas.
Nas sedes indicadas pelas organizações, a reportagem encontrou salas vazias e nada que demonstrasse que o serviço que elas se propuseram a fazer, à base de verba pública, tivesse sido efetivamente prestado. Algumas dessas entidades estão registradas em residências de servidores do governo e há até um caso em que a ONG funciona numa loja de artigos para consumo de maconha, em desacordo com o que ela alega fazer e contrariando o que a organização usa como pretexto para receber o dinheiro dos cofres públicos.
Uma das ONGs beneficiadas é a Associação Beneficente Ensine Mão Amiga – ironicamente, o nome já diz tudo. No mês passado, a Mão Amiga recebeu em sua conta 200 mil reais da Secretaria Nacional de Política para as Mulheres, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. A presidente da ONG é Helieth Dolores Pereira Duarte. Nesse caso, uma mão amiga lavou a outra. É que Helieth era até o início do mês assessora especial da própria ministra Damares Alves e coordenadora-geral de Gestão da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Crusoé foi até o endereço da suposta entidade e não encontrou, no local informado pelo portal da Transparência do governo, qualquer sinal de funcionamento da ONG. No telefone registrado em nome da Mão Amiga, atendeu uma pessoa que disse desconhecer a existência da organização.
No dia 5 de julho, uma portaria assinada pela ministra comunicou a exoneração da funcionária “por motivações técnicas”. Só nesta terça-feira, 20, de novo provocada pela reportagem de Crusoé, a assessoria de Damares informou que, diante “dos novos fatos, o ministério vai abrir procedimento apuratório para, se for o caso, tomar as medidas cabíveis”. O dinheiro, no entanto, uma indicação de emenda parlamentar do deputado bolsonarista Vitor Hugo, do PSL, segue na conta da ONG.
Em 2017, antes mesmo de oficializar sua candidatura a presidente, Bolsonaro chegou a dizer que “se um dia tiver poder para tal, não vai ter um centavo para ONG”. Em maio deste ano, classificou manifestantes que protestavam contra o governo de “maconheiros”. Ironicamente, o mais novo escândalo envolvendo o governo conseguiu unir, numa tacada só, o que Bolsonaro afirma abominar: ONG e maconha.
É que, dentre as organizações abastecidas com recursos de ministérios, está uma loja de artigos de fumo da erva. À loja Cultura Verde, o Ministério do Turismo pagou, por meio do Fundo Nacional do Turismo e da Fundação Cultural Palmares, 1,2 milhão de reais. “Aqui a loja é de tabaco e artigos de maconha, senhor! Vendo seda, narguile…”, disse ao ser abordado por Crusoé o funcionário, que desconhecia que o local recebia dinheiro público do governo. A ONG registrada no endereço do estabelecimento, em nome de Flávia Portela, ex-candidata a deputada distrital em Brasília, é o Centro de Estudos para o Desenvolvimento da Cidade. A entidade, que não tem sequer um site ou página para prestar contas de suas atividades, ganha dinheiro do governo para, em tese, realizar atividades voltadas à cultura negra. No prédio onde funciona a lojinha de THC, no entanto, comerciantes dizem nunca terem visto qualquer atividade com essa ou outra finalidade nem ao menos parecida. O valor de 1,2 milhão foi empenhado por meio de emendas impositivas de deputados bolsonaristas. Entre eles, Paula Belmonte, mulher do empresário Luís Felipe Belmonte, notório apoiador de Bolsonaro e ligado ao partido Aliança pelo Brasil, que ainda não vingou. O valor foi pago entre 2019 e 2021.
No final dos anos 90, a estimativa era de que existiam 22 mil ONGs no país, atuando nas mais diversas áreas. Atualmente, o IBGE calcula que existam pelo menos 230 mil ONGs, a maioria, em flagrante contradição com o próprio nome, vivendo exclusivamente de repasse de recursos governamentais. A expansão do número de convênios firmados pela União com ONGs foi iniciada nos anos 90 com a reforma do estado e a adoção de políticas de redução das despesas de custeio. Acompanhando uma tendência mundial, o Executivo diminuiu a oferta de serviços essenciais prestados diretamente e os delegou a entidades da sociedade civil, apoiando-as financeiramente.
A ideia inicial era que essas organizações que pudessem exercer determinadas funções de maneira mais eficiente que o estado. Mas, como sempre, os corruptos enxergaram nesse modelo mais uma oportunidade para desviar dinheiro público. Na lógica da corrupção, contratar uma ONG é bem mais elementar do que fazer uma licitação para contratar uma empresa para realizar um serviço. Durante os governos do PT, as parcerias com essas organizações se multiplicaram e passaram a privilegiar entidades criadas por sua clientela e aliados políticos. Em 2011, o então ministro do Esporte, Orlando Silva, deixou o comando da pasta sob uma enxurrada de acusações que tinham como pivô justamente organizações não governamentais abastecidas com recursos do ministério. O governo Bolsonaro, para variar, replica mais uma prática que sempre condenou.
Até dinheiro do Fundo Nacional de Saúde, o FNS, do Ministério da Saúde, tem irrigado ONGs que só existem no papel. Em 29 de dezembro, o FNS liberou 3 milhões de reais para a ONG Grupo de Resgate Ambiental, a GRA. Na sede da suposta organização, situada na periferia de Brasília, está a residência do vice-presidente da entidade, Claudio Oliveira. “Quando a gente abriu, abriu aqui. Tem um segundo endereço. Eu sou vice-presidente dela. É um projeto social, é uma ONG social. Com foco em crianças”, justificou, ao ser abordado por Crusoé.
O dinheiro foi reservado à entidade por meio de uma emenda impositiva da deputada Celina Leão, do Progressistas, e integrante do Centrão. Celina é uma bolsonarista de quatro costados. Atualmente, emprega em seu gabinete uma ex-esposa de Jair Bolsonaro, Ana Cristina Valle. Procurado, o Ministério da Saúde disse que “todos os critérios legais foram atendidos” para a contratação da ONG, mas não respondeu se chegou a fazer uma inspeção no local onde, em tese, a entidade deveria estar funcionando. Celina, a mesma que emprega a ex de Bolsonaro, parece familiarizada com o modelo. Em 2021, ela destinou mais 1,2 milhão de reais para outras duas ONGs que só existem no papel. Uma delas é a Associação Luta Pela Vida, presidida por Rômulo Sulz Gonsalves Júnior, ex-procurador-Geral da Companhia Nacional de Abastecimento, empresa pública vinculada ao Ministério da Agricultura.
Aos órgãos de fiscalização, caberá investigar em que medida a prática típica da era petista no poder se espraiou pelo governo Bolsonaro. Para além dos achados da reportagem de Crusoé, há indícios fortes de que o modelo foi de fato disseminado. No ano passado, a Folha de S.Paulo divulgou que o programa Pátria Voluntária, criado por decreto por Bolsonaro em julho de 2019 e liderado pela primeira-dama Michelle Bolsonaro, repassou recursos sem edital a instituições aliadas da ministra Damares – olha ela aí de novo. Beneficiada com 240 mil reais, a Associação de Missões Transculturais Brasileiras, AMTB, foi indicada pela ministra para receber os recursos, segundo documentos do próprio Pátria Voluntária. A AMTB consta no site da Receita Federal e em sua própria página na internet com o mesmo endereço de registro da ONG Atini, fundada por Damares em 2006 e onde a ministra atuou até 2015.
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