RuyGoiaba

Vai, bola! Baila!

23.07.21

Angeli, o cartunista, publicou anos atrás uma série de tirinhas chamada Duas coisas que eu odeio e uma que eu adoro. Boa parte das coisas odiosas, como sói acontecer com qualquer ser humano, estava bem próxima do universo dele: “eu odeio festa frequentada só por videomakers”, “eu odeio o circuito das artes” (personagem olhando embevecida para um quadro ruim e dizendo “aaah, o Kaíto extrapolou!”), “eu odeio artista plástico tentando teorizar” (outro personagem, numa poltrona, discursando sobre “o gestual, a mão solta”).

Lembrei dessas tiras do Angeli por causa do início dos Jogos de Tóquio. Sou jornalista, gosto de esportes (apesar da minha absoluta incompetência para praticá-los) e escrevo, vá lá, crônicas. Mas a junção dessas três coisas, que retorna com tudo a cada Olimpíada, é uma praga: jornalismo esportivo em forma de crônica com imagens “poéticas”, dose generosa de molho por cima desta lasanha de desgraças que é ser brasileiro em tempos de Covid. A cada quatro anos — se contarmos as Copas, a cada dois —, o espírito de Armando Nogueira volta a se mover sobre a face das águas e a gritar emocionado: “Vai, bola! Baila!”.

(Nos Jogos de Seul, em 1988, o Jornal Nacional incluía as crônicas “líricas” de Armando, então chefe do jornalismo da Globo. Houve uma exaltando, em estilo condoreiro, o feito heroico de Ben Johnson — e, 48 horas depois, outra execrando a terrível vilania do mesmo Johnson depois que o recordista dos 100 metros rasos foi pego no antidoping. As duas produziram em mim uma sensação que na época não tinha nome, mas depois passou a ser conhecida como “vergonha alheia”, aquela mesma que a Geração Z hoje chama de cringe.)

E dá-lhe história de superação dos nossos heróis olímpicos, para quem só ter chegado a uma Olimpíada ultrapassando infinitas adversidades já é uma vitória (até porque normalmente é isso mesmo que acontece com os brasileiros, com as exceções que a gente conhece: se beliscar um bronze, já está de bom tamanho). Não basta que os atletas sejam profissionais notoriamente bons, às vezes até excepcionais, naquilo que fazem: a TV quer a narrativa épica, quer Carruagens de Fogo em slow-motion, quer “jornalismo de emoção”. Se o telespectador gosta de novelinha, vamos alimentá-lo com novelinha. Se ele cansar da novela e quiser dar umas risadas, alternamos para o jornalismo engraçadinho — o resultado é algo entre Janete Clair de terceira categoria e stand-up comedy de quinta.

E, neste 2021, ainda calhou de a Olimpíada ser no Japão, o que nos dará a oportunidade de preencher uma cartela de bingo com TODOS os clichês do jornalismo brasileiro na cobertura do “país do Sol nascente”: vamos ter uma profusão de apresentadores de quimono, repórteres dizendo “arigatô”, velhinhos japoneses se exercitando em algum parque, belas paisagens com cerejeiras em flor e um texto em off explicando como os japoneses “conseguem conciliar tradição e modernidade” (mostra imagem de monge num templo, corta, agora põe pedestres apressados nas ruas de Tóquio). Mais que a música, a linguagem do lugar-comum não precisa de tradução para ser compreendida: na Rio-2016, foi samba, Carnaval, o gari Renato Sorriso dançando com a vassoura para simbolizar a inquebrantável alegria do carioca diante dos perrengues etc. etc.

Até entendo a necessidade, ou o interesse, de misturar jornalismo com entretenimento — embora muitas vezes a gente não consiga encontrar os restos mortais do jornalismo nessa mistura, nem debaixo do microscópio do Adolfo Lutz. Também admito que há quem saiba fazê-la bem (muito poucos). Mas o negócio é o seguinte: Nelson Rodrigues, aquele da “sombra das chuteiras imortais”, só existiu um. Se você não é o Nelson, faça a gentileza de não matar os seus telespectadores com uma overdose de sacarina. O esporte é interessante demais para ser soterrado por um caminhão de clichês e poesia medíocre.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Nesta semana, daria para fazer um textão só com os melhores candidatos. Pensei até em sair um pouco do mundo da política e dar o troféu a “Peguei Covid fazendo swing”, reportagem da BBC Brasil sobre a interdição de uma boate de sexo com capacidade para 300 pessoas (que surpresa! Quem poderia imaginar uma coisa dessas, não é? Suponho que tenha havido muito uso pouco convencional de máscaras, com algumas DSTs gostosinhas como brinde).

Mas logo a idiocracia bolsonarista se impôs. Primeiro, foi Daniel Silveira alegando ter desrespeitado o uso da tornozeleira eletrônica porque o cachorro roeu o carregador do aparelho, numa versão 2.0 da clássica desculpa “o cachorro comeu minha lição de casa”. Dias depois, pintou o campeão: o gênio matemático de Jair Bolsonaro dizendo que queda de 4% no PIB mais alta de 5% resultam no “milagre” de 9% de crescimento. Se é isso aí que sai da Aman, não se admirem de militar brasileiro só servir para pintar meio-fio e se envolver em negociações nebulosas de vacinas. Que posso fazer se toda semana aparece um CQD novo daquela minha coluna sobre o governo mais burro da história do Brasil?

Vinicius Loures/Câmara dos DeputadosSilveira, mente brilhante do bolsonarismo, em raro momento de conexão neuronal

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