Um presidente petista e o
“Estelionato Necessário”

24.08.18

O título desta coluna faz referência à “Ruptura Necessária”, expressão utilizada para caracterizar o documento “Concepção e Diretrizes do Programa de Governo do PT para o Brasil”, lançado em 2002. Hoje, o mantra econômico petista é novamente o da “Ruptura”.

É bom trazer isso à tona. Caso resulte vitorioso na eleição que se avizinha, o presidente petista, dada a situação do país, terá de realizar um cavalo-de-pau completo nas posições defendidas pelo partido para a gestão cotidiana da economia e sua relação com o exterior. E, ao contrário de 2002, ninguém mais comprará uma “Carta ao Povo Brasilleiro 2.0” pelo valor de face.

Vencer as eleições, mesmo para um candidato petista, exigirá ajustes fiscais e reformas estruturais. Para aqueles que remeterem o PT ao Planalto na ilusão de que “um outro mundo é possível”, o que lhes aguarda é uma rápida deterioração de fundamentos e perspectivas. Ou, então, uma inescapável ortodoxia.

Nesse caso, uma administração petista já começaria irmã siamesa do segundo mandato de Dilma. Confrontada à dura matemática, a promessa da “Ruptura” nada mais é do que um novo estelionato eleitoral.

Recordemos que, em 2002, a “Carta” endossava a tese da “Ruptura”, ma non troppo. No documento, o PT defendia “reforma tributária que desonere a produção”. Indicava a importância da “reforma previdenciária, da reforma trabalhista”. Defendia a “redução de nossa vulnerabilidade externa”. Nenhuma das aspas acima é inventada. Todas reproduzem fidedignamente os termos da “Carta”.

Com a “Carta”, Lula e PT ganharam crédito da comunidade financeira internacional, do empresariado e da opinião pública. Prometeram aderir à responsabilidade fiscal e às metas de inflação. Contratos seriam honrados; as dívidas do país, pagas. E, durante boa parte de seu período no Planalto, Lula terceirizou parcela importante da gestão macroeconômica, com posições-chave ocupadas por nomes como Henrique Meirelles e Joaquim Levy.

No entanto, muitas das medidas econômicas e sociais implementadas por Lula e Dilma, na contramão do que pregava a “Carta”, pareciam dar resultado. O Brasil beneficiou-se com o “boom” mundial de commodities. Alguns empresários refestelaram-se com linhas de crédito oferecidas por bancos oficiais para promover empresas “campeãs nacionais”.

Fluxos de investimento estrangeiro direto (IED) transcorreram intensamente — nem sempre pelas melhores razões — para estabelecer produção local e, assim, tirar proveito de um mercado interno superprotegido. Incentivos fiscais para fabricantes de automóveis ou eletrodomésticos hipertrofiaram-se.

Diante desse quadro, as reformas estruturais foram esquecidas. O modelo econômico adotado por Lula-Dilma foi se distanciando da “Carta” e ficando mais parecido com a “Ruptura”.

Privilegiar consumo em vez de investimentos, políticas setoriais em vez de horizontais e mercado interno em vez de comércio global não produziu mil maravilhas. O “nacional-desenvolvimentismo” manteve o país intocado na armadilha da renda média.

Passar os olhos pela “Carta” de 2002 e compará-la aos resultados de 13 anos do PT na Presidência ou à atual pregação do partido é estarrecedor. As reformas estruturais, à época concebidas como imprescindíveis, hoje são combatidas pelo PT como parte de uma agenda golpista.

A “Carta” defendia crescimento, mas em 2015, último ano inteiro do PT no poder, a fatia que o PIB brasileiro representava na economia mundial mantinha-se igual à de 2002: apenas cerca de 2,9%. Quanto à “vulnerabilidade externa”, o legado da prática petista é uma indústria brasileira mais acanhada, pouco competitiva e, destaque-se, mais desnacionalizada.

Ao contrário do imaginado projeto “soberano” de expansão econômica e inserção global, uma “neodependência” é o que nos foi entregue pelos princípios da “Ruptura Necessária” que continuam a compor o ferramental econômico do PT.

Numa repisada crítica ao “neoliberalismo” (o que quer que isso signifique), propõe-se agora, em linha com a “Ruptura”, uma gestão econômica filiada ao “desenvolvimentismo”. Isso permitiria ao Brasil contornar ajustes recessivos e irrigar a economia com crédito. O PT atenuaria o aperto fiscal e retomaria o crescimento a partir de uma função empreendedora de bancos oficiais e companhias estatais.

Tais medidas se dariam em contraponto à soberania do “deus-mercado” e a muitos dos princípios contidos na lista de diretrizes razoáveis que, desafortunadamente, recebeu a inconveniente denominação “Consenso de Washington”.

Aliás, certa vez Gustavo Franco disse que, se tal conjunto de recomendações formulado nos anos 1990 fosse chamado de “Consenso de Aracaju”, a sua adoção na América Latina seria menos problemática.

Um exame minimamente criterioso da experiência de crescimento recente dos “mercados emergentes” mostra que muitos rótulos postados são de tal forma superficiais ou generalistas que não carregam nenhum valor explicativo.

Desenvolvimentistas teoricamente favorecem a presença de um Estado forte na economia. Ora, dá para pensar num país em que o Estado seja mais forte do que nos EUA?

O robusto orçamento das forças armadas americanas cria uma “montanha de demanda” por tecnologias inovadoras (o que nos anos 1980 John Kenneth Galbraith chamava de “keynesianismo militar”). Isso faz dos EUA “desenvolvimentistas”? Ou o rótulo não cabe, já que, nos EUA, praticamente inexistem empresas estatais?

Países “neoliberais” são grandes receptores de IEDs. Permitem que mais famílias e empresas ocupem maior fatia da riqueza mediante peso comparativamente pequeno de impostos. Apresentam maior grau de internacionalização de sua economia. Seria assim a China — maior destino de investimento do mundo, onde a carga tributária representa 19% do PIB e cujas estruturas produtivas se encontram conectadas ao mundo — um país “neoliberal”?

 

Os possíveis “planos de voo” em economia para o próximo presidente não comportam muitas variações. Caso o PT se eleja e promova uma recaída intervencionista e o retrofit da danosa “nova matriz econômica”, o que nos aguarda é o derretimento da riqueza — uma versão exponencial dos estragos ao país durante a era Lula-Dilma.

O problema dos princípios esposados na “Ruptura” — todos reverberados pela atual discurso econômico petista — e em grande medida transformados em política pública pela “ nova matriz” não é que sejam desenvolvimentistas. São apenas simples e irresponsavelmente errados. Um ajuste macroeconômico é neoliberal? Não, por vezes é imposição do mais básico bom senso.

Mas nada disso basta. O Brasil só se recupera quando abandonar superficialidades e mexer para valer em sua economia política. Ou seja, quando adotar modelo (cujo rótulo pouco importa) menos baseado em consumo e mais alimentado por poupança e investimento; menos centrado no governo e mais na iniciativa privada; quando direcionar mais recursos à inovação e facilitar a vida dos empreendedores.

Perante a dose de sacrifício, visão e estratégia que tal inflexão implica, termos como “desenvolvimentista”, “neoliberal”, “progressista” não querem dizer absolutamente nada.

Além das dificuldades entre distância de discurso de campanha e condução da economia — o que em si já configura um engodo eleitoral —, o PT também terá um problema nada desprezível: recursos humanos.

Em 2019, e à luz da experiência dos que se aproximaram da gestão econômica petista de 2003 a 2016, alguém do “mercado” aceitaria assumir o Ministério da Fazenda ou o Banco Central? O que farão, vão “chamar o Meirelles”?

Uma vitória do PT em outubro demandará do novo presidente um “Estelionato Necessário”. E não haverá nem gente de qualidade que tope fazê-lo.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO