Carlos Fernandodos santos lima

Ignorância e teorias conspiratórias contra as urnas eletrônicas

06.08.21

Vamos armoçar/Sentados na calçada/Conversar sobre isso e aquilo/Coisas que nóis não entende nada/Depois, puxá uma páia/Andar um pouco/Pra fazer o quilo”. A irônica letra de Adoniran Barbosa em sua clássica Torresmo à Milanesa ilustra bem a necessidade básica do ser humano de manifestar sua opinião, mesmo que sobre assuntos que não tenha conhecimento algum, apenas pela busca por aceitação dos demais membros de seu grupo social.

Esse fenômeno, que antes era restrito às calçadas e mesas de bar, com o aparecimento das redes sociais transformou-se em livre manifestação de disparates por milhões de desqualificados (para não usar a expressão forte de Umberto Eco), para audiências cada vez maiores, sentindo-se cada um deles aprovado pela repercussão e aceitação do absurdo ou preconceito por outros indivíduos igualmente desqualificados. Perdeu-se, nesse processo de aprovação, o senso do ridículo e do autoconhecimento da própria ignorância, coisas que não faltavam aos peões de obra cantados por Adoniran.

Conjuntamente a esse espetáculo de tolices, em especial devido aos avanços tecnológicos e a incapacidade do senso comum de entender as descobertas científicas, o mundo se torna mais incompreensível para os mais idosos e para aqueles com educação deficitária – fenômeno comum no Brasil. Para essas pessoas intelectualmente frágeis, torna-se mais aceitável uma visão conspiratória de realidade, normalmente em que são vítimas de sociedades secretas, do próprio governo ou de governos estrangeiros, do que o esforço de tentarem entender ou aceitar o caótico mundo que lhes é apresentado.

Assim, em diferentes graus, vemos prosperar explicações simplórias da realidade, como as teorias que propagam a terra plana; que o homem jamais foi para a Lua; que o 11 de setembro foi obra do próprio governo americano; que os “illuminati” ou outra qualquer sociedade secreta dominam os governos; que a China produziu o vírus da Covid-19 em laboratório e o espalhou para ganhar bilhões ou, finalmente, que existe uma enorme conspiração para fraudar as próximas eleições em desfavor de Bolsonaro.

A incapacidade de pensarem de forma racional e inteligente a respeito desses assuntos lhes é característico, preferindo crer em um vídeo mentiroso de internet, postado por um terapeuta que faz acupuntura em árvores, a buscar explicações baseadas em estatísticas e fatos comprovados por fontes científicas confiáveis. Aliás, o método científico lhes é completamente desconhecido, acreditando que estatística é apenas a opinião somada dos membros de seu grupo de rede social.

Se esse fenômeno se restringisse aos incautos e ignorantes de sempre, mesmo com as redes sociais, isso seria apenas uma amplificação de um viés cognitivo negativo, mas inafastável, do ser humano, com repercussão limitada. Entretanto, o que vemos são políticos populistas por todo o mundo utilizando-se do preconceito, medo e sentimento de inferioridade desses agrupamentos para fazer valer seus interesses pessoais por poder.

E isso não é apenas um método de políticos da direita populista, apesar de eles serem os maiores manipuladores desse tipo de desinformação. Aqui no Brasil, por exemplo, simpatizantes do Partido dos Trabalhadores ainda afirmam, como justificativa das descobertas de esquemas de corrupção bilionários no governo desse partido, que a Operação Lava Jato foi obra do governo americano e que os procuradores da República responsáveis pela investigação – este articulista, inclusive – foram treinados pela CIA para desestabilizar o governo de esquerda.

Nonsense completo, sem qualquer prova ou indício a lhe dar suporte, mas que ainda se propaga entre os igualmente desinformados simpatizantes daquele governo. Em vez de analisarem os milhões de dados comprobatórios da corrupção que estão acessíveis para quem desejar se informar adequadamente, preferem acreditar nas lendas que lhes são contadas de que as investigações são apenas uma perseguição política contra seus políticos de estimação.

Agora, com o governo Bolsonaro, acontece o mesmo fenômeno, preferindo os simpatizantes da direita populista negarem sob as mesmas alegações de perseguição as evidências de corrupção – rachadinha é corrupção em sua acepção mais ampla – nos gabinetes da família Bolsonaro, bem como a trágica política negacionista que na verdade somente encobria o confronto político com governadores e prefeitos e a busca de esquemas de propina para aquisição de vacinas.

É nessa conjunção de manipulação de teorias conspiratórias, do interesse em distrair a população dos problemas mais importantes do país e de uma perigosa escalada golpista que se insere a atual campanha pelo voto impresso. É triste ver tantos brasileiros sendo enganados – ou pior, se autoenganando – com afirmações sem sentido sobre o procedimento de votação eletrônica em nosso país.

Antes de mais nada, não existe qualquer comprovação de irregularidade no sistema de votação brasileiro. Todas as alegações são baseadas em uma suposta conspiração gigantesca de todos os setores políticos e do Judiciário para não deixar Jair Bolsonaro ser reeleito em 2022. Ele transformou-se, por obra de uma interpretação pobre e parcial da realidade, em um “Messias” que irá salvar seus convertidos dos malvados mercadores do templo da política, e por isso será perseguido por todos os demais.

Nada mais equivocado. Jair Bolsonaro na verdade é a pior excreção desse mesmo sistema político, sendo apenas um político baixo e sem escrúpulos que se beneficiou de um discurso autoritário e equivocado sobre um falso idílico governo militar e de uma carona indevida na rejeição à corrupção endêmica revelada pelo Mensalão e Lava Jato, para chegar à presidência da República. Além disso, é um político golpista que usa dessa falsa questão para viabilizar um atentado contra a democracia, tentando atrair parcela das Forças Armadas para sua aventura. É de se esperar que as instituições deem uma resposta adequada a essas ameaças, não ficando somente na ameaça de inquéritos que nunca chegam ao fim, especialmente diante da má vontade do submisso Espectador-Geral da República, Augusto Aras.

A verdade é que não há possibilidade real de fraudes nas urnas eletrônicas, uma vez que elas são auditadas e auditáveis também eletronicamente. Não é porque um desinformado não vê um pedaço de papel que não existe verificação da higidez do sistema. Aliás, é muito mais difícil fraudar as urnas eletrônicas sem deixar rastro que fraudar eleições no “bico da pena”, como se fazia na Velha República. Partidos políticos, inclusive aquele que elegeu Bolsonaro, e peritos em informática são constantemente convidados a testarem as urnas eletrônicas, e nada até hoje foi constatado de irregular. Além disso, não é possível se falar em um ataque hacker contra as urnas, pois elas nem sequer estão conectadas à internet.

O que temos, então, é apenas uma distração – no sentido de truque –, para nos fazer esquecer os reais problemas do país, dentre os quais a corrupção do sistema político e a deformação do sistema eleitoral partidário. Trata-se de uma técnica de punguista que nos distrai com uma mão enquanto nos rouba a carteira com outra. Enquanto ficamos discutindo teorias conspiratórias sem sentido, o governo vai ganhando tempo para afastar o impeachment e enfraquecer as evidências de que membros do governo muito próximos ao presidente – inclusive familiares dele – estão envolvidos até o pescoço em fraudes das mais diversas espécies.

O fato é que o sistema político já deforma o sistema partidário e eleitoral sem precisar hackear uma urna eletrônica sequer. Com a distribuição farta de dinheiro público oriundo dos fundões eleitoral e partidário – bem como o acesso à corrupção pública decorrente de cargos no governo –, os ajuntamentos de caciques ou empreendimentos familiares que chamamos de partidos políticos manipulam a opinião pública pelo abuso do poder econômico, reforçando candidaturas que lhes são leais e deixando à míngua de recursos qualquer candidatura independente.

Precisamos, sim, ir para a rua, mas pelos motivos certos. É preciso reformar nossa política, democratizando os partidos, permitindo candidaturas independentes e tornando ainda mais transparentes quaisquer uso de dinheiro público ou captado legalmente para as eleições. É preciso reforçar a Justiça Eleitoral, tornando-a mais eficiente no combate a abusos. É imprescindível colocar na cadeia todos os ladrões dos cofres públicos, sejam eles políticos que se apropriam de parte dos salários de servidores, sejam aqueles que fraudam licitações para compra de vacinas, insumos médicos ou um lápis sequer.

A única forma de fazermos isso é deixarmos de nos distrair com a primeira teoria conspiratória que aparece. Essas pessoas que acreditam nessas mentiras podem pensar que são espertas e inteligentes, mas na verdade apenas fazem papel de tolos e ingênuos a repetir como papagaios descerebrados as tolices que estelionatários como Bolsonaro e Lula contam. Está na hora de acordarem dessa letargia mental para o bem do Brasil.

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