Câmara dos Deputados"Se houver uma ruptura da ordem em algum momento, infelizmente, vai ter que haver uma operação de controle. E aí as Forças Armadas serão obrigadas a agir"

‘Falta equilíbrio nos Três Poderes’

O general da reserva Maynard Santa Rosa, que chefiou a Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo Bolsonaro, faz reparos à ‘dialética combativa’ do presidente, mas dá razão a ele na disputa com o Judiciário e vê risco real de ‘ruptura’ e de uma ação militar
13.08.21

Maynard Santa Rosa integra a lista de militares que não resistiram a um ano de governo Bolsonaro. O general da reserva, de 76 anos, se demitiu em novembro de 2019 do cargo de chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, por divergências com a chamada ala ideológica do governo, guiada pelo guru Olavo de Carvalho. Hoje, ele ainda vê com ressalvas alguns movimentos do presidente e de seu time mais próximo, mas ao mesmo tempo vocaliza posições próximas às do antigo chefe e que ajudam a entender o que vai pela cabeça do próprio Bolsonaro e dos fardados que seguem no governo.

Na reserva há onze anos, Santa Rosa acredita que o país caminha para uma ruptura se forem adiante os embates do Planalto com a cúpula do Judiciário, especialmente se um poder desrespeitar a decisão do outro“O que estamos vendo é um presidente que age com palavras, o STF que age com atos e o Congresso por omissão. Não creio que haja intenção de ninguém de fazer ruptura, mas que a ruptura é a tendência a acontecer por força dessas circunstâncias”, diz. O general sustenta que a opinião também é partilhada por militares da ativa, com quem, a despeito de estar afastado do governo, ele ainda mantém contatos por meio de grupos de WhatsApp.

Para o general, o Supremo Tribunal Federal age “como partido político”. Ao analisar o conflagrado cenário político atual, o general trafega sobre uma linha tênue ao falar sobre uma eventual necessidade da atuação das Forças Armadas como poder moderador, embora isso esteja completamente em desacordo com as suas atribuições constitucionais. Recorrendo a eufemismos como “operação de controle” e “golpe informal”, Santa Rosa se vale de uma interpretação desvirtuada de um artigo da Constituição para defender a hipótese de intervenção militar em caso de impasse institucional. Nesta entrevista a Crusoé, o general também avalia o impacto que a atuação de militares na pandemia provocou na reputação do Exército e fala das suspeitas de corrupção que recaem sobre integrantes da caserna que hoje estão na mira da CPI da Covid.

O que o sr. achou do desfile de blindados em Brasília no dia da votação da PEC do voto impresso na Câmara, nesta semana?
Foi uma bobagem não ter ido direto para Formosa (cidade goiana a 75 quilômetros de Brasília para onde os veículos seguiram, para um treinamento militar). Achei, na verdade, uma pirotecnia. Uma infantilidade.

O sr. é contra o envolvimento de militares com a política. Como recebeu a manifestação pública do ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, em defesa do voto impresso, uma bandeira política do presidente Jair Bolsonaro?
O general Braga Netto não está em cargo militar, ele ocupa um cargo político. Assim, ele tem todo o direito de participar da dialética política. Casualmente, ele é um general.

Mas o fato de ele estar à frente das Forças Armadas não tem um peso diferente?
O chefe supremo das Forças Armadas é o presidente, não é o ministro da Defesa. O ministro da Defesa é o coordenador institucional, não é o comandante. Ele não tem peso de comando.

O presidente Bolsonaro tem feito ameaças à realização das eleições. Como o sr. enxerga esse comportamento?
O presidente, por força da personalidade e da técnica política que ele adota desde o início, fala coisas que chocam a opinião de muita gente. Mas eu não valorizo o que ele fala. Prefiro me ater à observação dos fatos em si. Ele fala muito, mas não tomou nenhuma atitude até agora. Não há fatos que corroborem o que ele fala. É mais para efeito de opinião do que para efeito prático. Mas, se analisarmos o cenário, há um desequilíbrio nas relações. Desde a Constituição de 1988, o Executivo vem perdendo a liberdade de ação, e isso é vital na sua estratégia. As pessoas precisam ter liberdade de ação para resolver os problemas. Gradualmente, os poderes Legislativo e Judiciário foram avançando naquilo que a doutrina democrática ensina que é área do Executivo. Quando o presidente Bolsonaro assumiu o poder, essa invasão se tornou mais visível, mais ostensiva. É notório o envolvimento dos ministros do STF em assuntos que não lhes dizem respeito, de política.

Esse é um dos argumentos usados por Bolsonaro para atacar o Supremo. O sr. concorda com esses argumentos?
O STF age como se fosse um partido político. E, pior, com uma afinidade com os partidos mais de esquerda, principalmente. A gente está vendo os ministros do STF legislando e o Congresso se omitindo. Há uma espécie de conivência entre ingerências do Judiciário e vista grossa do Legislativo. Não sei se isso é costurado debaixo dos panos ou se é decorrência da conjuntura. Só sei que as relações entre os Três Poderes estão desequilibradas. Se as coisas estão desequilibradas e nós estamos vivendo um cenário degradante, isso pode levar, fatalmente, a um problema.

Que tipo de problema?
Por exemplo, quando um dos poderes se recusar a cumprir a decisão do outro. Estamos caminhando para isso, rapidamente. Se isso acontecer, vai gerar um impasse institucional. E, se acontecer, a única alternativa visível é o artigo 142 da Constituição. Isso é um absurdo.

O sr. se refere ao uso das Forças Armadas para a garantia da lei da ordem?
Exatamente.

Mas esse cenário não é provocado pelo próprio presidente da República?
Não creio, porque ele ameaça com palavras.

As palavras de um presidente da República têm consequências práticas.
Eu não defendo, não concordo com ele. Entendo que ele age por palavras, enquanto o STF age por atos. Aí que está o problema. Então, o que estamos vendo é um presidente que age com palavras, o STF que age com atos e um Congresso que age por omissão. Isso vai gerando um clima instável. Eu não estou preocupado, mas sei que, se houver uma ruptura da ordem em algum momento, infelizmente, vai ter que haver uma operação de controle. E aí as Forças Armadas serão obrigadas a agir. Nenhum dos integrantes do Alto Comando que eu conheço tem o menor interesse nisso. Pelo contrário, esse assunto é empurrado com a barriga. Mas, se ocorrer um impasse de fato, não tem saída.

Divulgação/SEAEDivulgação/SEAE“Não estou falando em golpe. Mas de intervenção para retomar o equilíbrio institucional”
O que seria exatamente essa “operação de controle”?
Não tenho resposta para isso. A única alternativa que eu já vi foi a tese do doutor Ives Gandra (jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie) de invocar o artigo 142 da Constituição. Ninguém está dando importância, mas tem lógica.

É o próprio presidente quem tem ameaçado descumprir decisões de outros poderes, como o resultado das eleições, por exemplo.
Não vai acontecer isso, porque ele não tem tido a coragem de cumprir com a palavra. Eu particularmente acho que o processo eleitoral está sob suspeição. Eu não questiono se há segurança nas urnas ou se a transmissão dos dados para a totalização dos votos é segura. O que eu defendo é que a eleição precisa de uma auditoria externa.

O Tribunal Superior Eleitoral afirma que há uma série de auditorias no processo de votação por meio das urnas eletrônicas.
Não tem. As auditorias que os partidos fizeram nos últimos anos são parciais. Eles não tiveram acesso ao processo como um todo. O TSE não abriu essa possibilidade e falta transparência. Essa falta de transparência e a impossibilidade de auditar o processo externamente mostram que o processo é suspeito. Nesse sentido, o presidente tem razão. Ele pode ser um insensato, um agitador. Mas nisso ele tem razão.

Esse sistema está em vigor há 25 anos, sem nenhum caso de fraude comprovado. O próprio presidente foi eleito seis vezes por esse sistema. Por que questioná-lo agora?
Agora ele assumiu essa bandeira, mas antes disso muitos grupos que se preocupam com o processo eleitoral já vinham questionando isso. Nunca se deu a devida atenção. Recentemente, o presidente, talvez em um golpe de oportunismo, entendeu que isso poderia ser uma bandeira. E daí levantou a bandeira. Se essa bandeira interessa politicamente a ele, eu não sei. Talvez, sim. Mas há uma diferença entre atingir metas políticas e desestabilizar instituições. Não creio que ele seja capaz de fazer isso (desrespeitar o resultado das eleições). Palavras são palavras, nada mais.

Esses ataques reiterados do presidente contra ministros do Supremo, por si, já não desestabilizam as instituições?
Na medida em que, moralmente, esses integrantes do Judiciário se comportam indevidamente, eles são afetados. Se tivessem sido isentos desde o início, nos julgamentos, nas colocações que fazem, não seriam vulneráveis às ameaças de quem quer que fosse. Eu não estou defendendo o presidente. Até me reservo o direito de não falar porque trabalhei com ele. Não quero entrar em querelas contra o presidente. Tenho minhas reservas, mas não gostaria de expô-las. Não concordo com essa postura, com a dialética combativa que ele adota. Não sou favorável a isso, porque compromete a harmonia do país. Mas, no contexto dessas disputas, ele tem razão, infelizmente.

O sr. ameniza as ameaças do presidente dizendo que são apenas palavras, mas nos Estados Unidos Donald Trump insuflou apoiadores mais radicais a invadir o Capitólio após as eleições, uma ação que resultou em cinco mortes. O sr. não teme que isso possa ocorrer também aqui?
Eu concordo que há um comportamento irresponsável que pode produzir efeitos parecidos com o que aconteceu nos Estados Unidos. Acho que nós não estamos vivendo em uma dimensão estável, por causa desses arroubos. Falta equilíbrio nos Três Poderes.

O sr. acredita na possibilidade de uma ruptura institucional?
Eu não acredito na intenção de ruptura, mas que a ruptura possa acontecer por força das circunstâncias.

Quais circunstâncias?
Um impasse formal, uma decisão do Supremo deixar de ser cumprida ostensivamente, por exemplo. Ou uma decisão do Legislativo ser violada pelo Judiciário. Acho que estamos caminhando para isso.

Isso seria grave.
É grave. Não creio que haja intenção de ninguém de fazer ruptura, mas creio que a ruptura é a tendência, por força dessas circunstâncias. 

O sr. está falando de um golpe de estado?
Não estou falando em golpe. Mas de intervenção para retomar o equilíbrio institucional.

Alan Marques/FolhapressAlan Marques/Folhapress“Concordo que há um comportamento irresponsável que pode produzir efeitos parecidos com o que aconteceu nos Estados Unidos”
Há espaço para um golpe, ou um autogolpe, em um país como o Brasil, em pleno século XXI?
Não vejo possibilidade de um golpe formal, de um poder assumir o comando de outro. Mas de um golpe informal, que, inclusive, já está ocorrendo.

Como já está ocorrendo?
Sim, o golpe já está sendo dado pelo STF, quando ele invade as atribuições dos outros poderes.

O presidente é alvo de inquéritos no STF e no TSE. Um deles pode torná-lo inelegível em 2022. Essa decisão, por exemplo, poderia levar ao impasse de que o sr. fala?
É uma provocação que pode gerar um impasse. Como lhe falei, essa é uma tendência porque o STF está agindo como partido político. Então, eles podem adotar critérios políticos para decidir em vez da isenção jurídica. E, se isso acontecer, a resposta pode ser política. Daí, o efeito não é só político, é jurídico e institucional também. Esse tipo de problema pode acontecer. O presidente está sendo acossado todos os dias.

Os inquéritos apuram possíveis crimes cometidos pelo presidente, como associação criminosa nos ataques às instituições.
Não cabe ao juiz apurar isso. Deveria ser ação do Ministério Público, não do Judiciário. É mais uma extrapolação, mais um abuso de autoridade que faz o Supremo Tribunal Federal. A competência é do Ministério Público, e não do Judiciário.

Outros militares com quem o sr. conversa também acreditam nessa possibilidade de ruptura institucional? O sr. poderia dizer quem?
Essa é a minha opinião e tenho visto muita gente emitir opiniões semelhantes. Agora, se essa é uma opinião generalizada ou não, não posso lhe dizer.

O sr. está falando de militares da reserva e da ativa também?
Exatamente.

A troca inédita do comando das Forças Armadas em março não reforça a tese de que o presidente Bolsonaro pretende usá-las para seu projeto político?
O cargo de comandante tem conotação política, é de escolha do presidente. Então, ele trocou os cargos da competência dele. Eu, particularmente, achei estranho, mas é legal. Não aprofundei nas causas, não sei quais foram os motivos.

Como o sr. vê o possível envolvimento de militares nas suspeitas de corrupção dentro do Ministério da Saúde investigadas pela CPI da Covid no Senado?
Do ponto de vista prático, não tem efeito nenhum porque não se consumou nenhum tipo de contrato. Se não houve prejuízo de um centavo ao erário, por que essa querela toda? Isso é exploração política pura e simples. 

As falhas na gestão da pandemia sob o comando de militares não mancham a reputação do Exército?
Não tem nada a ver. O ministro (Eduardo) Pazuello, casualmente, é um general que foi ministro. A instituição não foi consultada. Se fosse consultada, tenho certeza de que não concordaria. Ele não foi indicado e nem era a personalidade mais adequada para fazer a gestão que se queria. Foi uma decisão política do governo. A instituição não foi consultada sobre a nomeação do general, foi uma questão de amizade pessoal (com o presidente).

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