MarioSabino

O hipogrifo

13.08.21

Enquanto Jair Bolsonaro desfilava tanques de fumaça contra ministros do STF na Praça dos Três Poderes, ministros do STF continuavam infatigáveis no seu trabalho de lançar uma cortina de fumaça sobre o Judiciário. Nesta semana ainda mais pitoresca do que o habitual, a Segunda Turma do tribunal confirmou uma decisão monocrática de Gilmar Mendes, proferida em abril, e anulou a ação penal aberta pela Lava Jato do Rio de Janeiro contra advogados acusados de desviar 151 milhões de reais da Fecomércio fluminense, para comprar sentenças no STJ e no TCU. No rol de investigados pelo suposto (“suposto” é uma palavra que insiste em me perseguir) esquema, estavam causídicos de Lula, os senhores Cristiano Zanin e Roberto Teixeira, da família Bolsonaro, o irrequieto Frederick Wassef, e o filho do presidente do STJ, o prodigioso Eduardo Martins, cujos talentos advocatícios o colocaram na capa da Crusoé. Uma plêiade.

Todo o material foi jogado no lixo: do recebimento da denúncia pelo juiz federal Marcelo Bretas aos mandados de busca de apreensão, executados pela PF em setembro de 2020. Provocada pela OAB, a Segunda Turma decidiu que o magistrado não tinha competência para julgar o caso e o enviou para a muito célere Justiça estadual do Rio de Janeiro. O roteiro foi semelhante ao dos processos de Lula retirados da Justiça Federal de Curitiba.

Decisão tomada, Eduardo Martins enviou a seguinte nota a O Antagonista:

“O advogado Eduardo Martins sempre confiou na Justiça. No exercício da profissão, aprendeu a respeitar as decisões judiciais, obedecendo o devido processo legal. Acatou com resignação e serenidade, decisões equivocadas e até mesmo abusivas, pois sempre acreditou no reconhecimento dos seus direitos pela Suprema Corte do país. Eduardo Martins reforça que as liberdades civis, bem como as prerrogativas da advocacia, podem contar com um guardião atento e cuidadoso: o Poder Judiciário brasileiro.”

Foi com resignação e serenidade, igualmente, que o seu pai, Humberto Martins, partiu para cima da Lava Jato do Rio de Janeiro, um mês antes de Gilmar Mendes proferir a decisão monocrática confirmada agora pela Segunda Turma do STF. Alegando “autodefesa” do Judiciário, o presidente do STJ abriu um inquérito de ofício para investigar procuradores da operação, que teriam cometido ilegalidades ao decidir investigar o seu filhote e ele próprio. Humberto Martins seguiu o fim da picada aberta no STF por Dias Toffoli, com o seu inquérito do fim do mundo. O presidente do STJ usou como base para a sua extraordinária peça jurídica uma entrevista do hacker Walter Delgatti Neto, herói petista, e na sua cruzada pessoal pretende lançar mão das mensagens surrupiadas pelo justiceiro digital do celular de Deltan Dallagnol — como “reforço argumentativo”, provavelmente, da mesma forma que Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski o fizeram, a fim de transformar Lula em ex-condenado.

O cidadão aqui, assim como o cidadão aí, está na estranha situação de ter de defender o STF contra os ataques de Jair Bolsonaro às instituições democráticas — e, ao mesmo tempo, horrorizar-se com a demolição promovida pelo STF de todas as tentativas de investigar gente poderosa. O que é também uma forma de minar a democracia. Tudo fica ainda mais complexo porque Jair Bolsonaro, em virtude dos seus desvarios, foi incluído no mesmo inquérito do fim do mundo que censurou a Crusoé e me levou para a frente de um delegado da PF, por ser publisher de uma revista que estampou reportagem ancorada em documento entranhado em processo oficial (desculpe-me, mais uma vez, pela autorreferência, mas ela é incontornável). Ou seja, um inquérito que fere a democracia e o Estado de Direito, ao colocar o STF na posição de vítima, titular da ação penal e julgador — e que inspirou o presidente do STJ a acuar procuradores da Lava Jato –, agora serve para defender a democracia e o Estado de Direito.

Diante de tal monstruosidade, recorro à literatura, para lhe emprestar uma imagem. Mais precisamente, a Jorge Luis Borges, de quem tive a honra de assistir a uma conferência, em 1984, em São Paulo. Em O Livro dos Seres Imaginários, uma espécie de bestiário escrito em chave poética, o escritor argentino dedica um capítulo ao hipogrifo. Eis o trecho em que o explica:

“Para significar a impossibilidade ou incongruência, Virgílio falou de acasalar cavalos com grifos. Quatro séculos depois, o comentador Sérvio afirmou serem os grifos animais que, da metade do corpo para cima, são águias e da metade baixo, leões. Para dar maior força ao texto, acrescentou que eles abominam cavalos… Com o tempo, a locução jungentur jam gripes equis (“cruzar grifos com cavalos”) chegou a ser proverbial; no início do século XVI, Ludovico Ariosto lembrou-se dela e inventou o hipogrifo. Águia e leão convivem no grifo dos antigos; cavalo e grifo convivem no hipogrifo ariostiano, que é um monstro ou uma invenção de segundo grau.”

Brasília é um hipogrifo, uma invenção de segundo grau.

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  1. O obsessão de vcs pelo Bolsonaro é doença mental. Oh, dúvida cruel, quem destrói mais a democracia? Bolso ou supreminho? Se vcs não fossem doentes, entenderiam que Bolso é só “sintoma”... supreminho vem rasgando a CF há muito mais tempo... livramento da Dilma acerca da perda de direitos políticos, Gilmar dando habeas corpus para parentada, Toffoli despachando em causa própria, Carmen e Rosa legislando, etc...

  2. O Sabino é gente boa, mas depois que se juntou com o "MaisNada", perdeu grande parte da sua exuberância, ... aí, ... me vem à mente aquele dito popular mais que manjado: "O que anda com os sábios ficará sábio, mas o companheiro dos tolos será destruído". ..... Meus deuses, ... Poor Sabino. _____Iiiihh!!, ... pior que já escuto zurros dos MUARES do MaisNada. ,,, kkk! ... Abs.,,, Sabino.

  3. Vemo-nos agora poupando o STF para não dar razão ao presidente Bolsonaro que só não a tem porque também é um mal-intencionado. Dentre os ministros sob encomenda do STF, há um que mais se assemelha ao Bolsonaro em tudo de ruim que ele representa para o Brasil. Resumo da ópera: estamos mal servidos nos 3 poderes. Pior: no Judiciário. Além de pior: no STF.

  4. Sempre muito eloquente e erudito, Marriô Sabinô; pena que todo esse palavrório traduzido do francelho significa apenas que o arbítrio ilegal e inconstitucional do STF é bom quando é contra as pessoas "certas", ruim quando é contra o blog aqui. Triste fim o do jornalismo de direita brazuca.

  5. Texto rico, inteligente e desafogador. Poucos dos letrados, inteligentes e desafogadores, tem neste pais a coragem de -até- imaginá-lo pois o fisiologismo dos interesses (marca desta "República" que, quando em fase de Democracia a enfraquece. Brasilia, por vocação nacional, é uma convergência de contrafações. Justiça e Verdade não povoam corações e mentes dos nossos senhores do Poder. Bolsonaro e STF e que tais, tudo a ver!

  6. Cada um defende a democracia que lhe causa maior conforto para continuar as falcatruas de sempre e deixar o povo na miséria e na insegurança, que se explodam!!.

  7. O Executivo é golpista, autoritário e provavelmente criminoso. O possível ex e futuro é condenado em 3 instâncias. O presidente da Câmara tem uma capivara gigantesca. O relator da CPI da Pandemia é outro notório. O chefe do MP é um lambe-botas do golpista. O Judiciário é dominado por um ministro que tem horror de investigar poderoso envolvido em corrupção. Parte das FAs, da PF, das PMs e órgãos de controle parece cooptada pelo primeiro. Alvissareiro e encorajador o futuro desta suposta nação.

  8. Inimaginável o que estão fazendo com as instituições brasileiras. Parecem pedir uma intervenção militar. Se acontecer, lá, por volta de 2042, ainda vão dizer que os militares destruíram o perfeito funcionamento e equilíbrio entre os poderes da república. Essa segunda turma do STF parece ser o foco da metástase que mata nosso país. Salvem nossa democracia. Mantenham os militares nos quartéis, pelo amor de Deus!

  9. O STF e o STJ, criam leis próprias. A Câmara federal, cria leis para defender os corruptos. O executivo, aloprou. Todos defendem o seu direito ao Estado Democrático de Direito. O DIFÍCIL É ESSE TAL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO CHEGAR A NÓS, SIMPLES MORTAIS.

  10. Para ser mais claro, o país é um hospício, onde os pacientes assumiram o controle.Ou, circo, ou uma comédia. Tudo menos, sério. A corrupção é a vestimenta preferida dos políticos, acompanhadas de colarinhos brancos. O STF também, sucumbiu aos charmes dos corruptos. Por ai, vai. Um sistema de governo que estimula a deturpação dos verdadeiros valores humanos. O resultado é uma pais moralmente doente. Assim, o que se vê são crises políticas constantes, à procura do poder. O país que se exploda.

  11. Mário, tudo o que eu posso dizer é que sou uma criatura sem esperança, sem alma, sem nada. O Brasil para mim acabou. Só tenho a agradecer a você por nos explicar o inexplicável.

    1. Também endosso suas palavras. A cada dia, a desesperança (tendo em vista um futuro surreal), e até um certo desespero (com o cotidiano implacável) me invadem, quase tomam minhas forças. Aos 65, educadora que fui, por convicção, vejo o país em frangalhos. E sempre tive a certeza de que estamos nessas condições porque a justiça brasileira sempre foi a favor de poderosos, desde o seu nascimento. Hoje, essa hipocrisia se escancara, pra que ninguém tenha mais dúvidas dos seus descaminhos infelizes.

    2. Infelizmente, do alto dos meus 72 anos, faço minhas, suas palavras.

  12. Mário Sabino, genial. Como não entendemos, nem podemos entender esta situação, temos que recorrer a essas figuras imaginárias. Quanto a Brasília...é" hipogrifo de 5a".

  13. Se Borges tivesse conhecido Gilmar Mendes haveria de imaginar uma serpente em corpo de ariranha... ou de raposa, ou de veado, sei lá.

  14. Pertinente e sagaz analogia do Sabino à Brasília que é bestial, mesmo. Hipogrifo perfeito da besta fera montada numa mula sem cabeça.

  15. Escolher o malvado favorito da vez faz parte. Eduardo Cunha ja teve seu papel e sua punição, assim como a própria Dilma... No momento, Bolsonaro eh o perigo real e imediato, todos pelo impeachment.

  16. O texto vinha bem até o hipogrifo. Mário, sem ensinar padeiro a fazer pão, apenas esboçando chateação: não é legal sentir-se ignorante ao ler alguma coisa, especialmente quando o que não se entende é algo arrancado da extrema erudição. O leitor deve sentir-se de alguma forma feliz, ainda que o assunto seja triste como, infelizmente, sempre é.

    1. Maria, obrigado pela forma educada com que você comentou, mas, para poder responder adequadamente, além de estudar o Borges que o Mário citou, ainda teria de entender aquele monte de citações suas. Vou deixar pra próxima.

    2. Geraldo, você é um erudita e como tal, respeite a licença literária do autor, leia um pouco ao que ele nos remete, se lhe é desconhecido. O leitor não é crítico literário em uma Revista Eletrônica, paga. Também não aplaudem Análise que o autor tem na sua psiqué, algo a ver com J.L.Borges. Um tanto Misantropo como Molière e Shopenhauer.

  17. Dante ficaria chocado com o décimo círculo do Inferno criado no Brasil do sec. XXI: o cruzamento de uma política alucinada e corrompida com a vileza de uma Justiça desprezível.

  18. Mais uma vez você, com lucidez, disseca as tragédias que estão se abatendo sobre o Brasil. Mas, interessante ler os comentários - a quantidade de elementos das duas faces da moeda PT/Bolsonaro que opinam. Enfim, se servir para abrir pelo menos um pouquinho a mente deles é animador: nem tudo está perdido.

  19. É bom sonhar! Será que um dia Deus será brasileiro; creio em uma grande vingança de nossa consciência coletiva pela perversa escravidão de nossos irmãos negros, me permito citar a épica poesia de Castro Alves “ Sr Deus dos desgraçados, porque permitís senhor Deus” pequeno trecho de o Navio Negreiro. Quando poderíamos imaginar que dois poderes se respeitam para que nenhum julgue o outro por estarem envolvidos em atos pouco republicanos, vindo daí nossos dissabores, salve-nos Deus.

    1. Quando o gado não consegue entender uma palavra de um texto, chama o autor de "falso intelectual". Essa frase dita por esse energúmeno parece mais um pedido de piedade: "parem de bater no meu Mito, eu não aguento mais ter de descobrir as verdades sobre ele e ainda ter de passar um paninho". Imundo.

  20. Mario vc é o único a quem consigo ler na Crusoe. Para de andar com o Diogo porque ele é completamente destrambelhado e pode colocar sua reputação em risco.

    1. Para adentrar o nível do comentário, "Sabino não anda com Diogo", pois moram em países diferentes (contém ironia)

  21. os EXEMPLOS EXECRÁVEIS que uma SOCIEDADE tão CORRUPTA é capaz de produzir! São DEGENERADOS MORAIS que IMPEDEM o BRASIL de AVANÇAR! Em 2022 SÉRGIO MORO “PRESIDENTE LAVA JATO PURO SANGUE!” Triunfaremos! Sir Claiton

  22. Para refletirmos : De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto (Rui Barbosa-1914). Perfeito comentário o seu Mário, e tomo a liberdade de incluir essa pérola do Rui Barbosa .

  23. Desde que Gilmar Mendes, Lewandowski e Toffoli se uniram, dá para fazer um estrago imenso no regime democrático, porque manter impunes políticos corruptos fere mortalmente a democracia, na medida em que um Poder de Estado é usado como campo para a prática da mais variada gama de delitos, tirando da coletividade produtiva meios para seu desenvolvimento. Agora o STF tem que arranjar um meio para justificar o que fizeram com a Lava Jato e ao mesmo tempo frear Bolsonaro. Vai ficar difícil…

    1. Faltou OAB, Funcionários ou Servidores públicos ,empresários, Congresso nada brasileiro, pensando somente em seus amigos ou companheiros

  24. Que maravilha de crônica Mario! Erudição, clarividência e perspicácia! Lucidez que dói em se tratando de Brasil... Hipogrifo, que criatura tão teratologica é essa? É o Brasil bolsonarista... abraço

  25. O tal artigo 142, da rebelde e inconclusa Constituição de 1988, está por um fio para ser invocado por uma significativa parcela da população, e, pior, por outra parcela dos que detém a força nas mãos, estes os mais decididos. A conjuntura nacional virou um rastilho de pólvora, esperando mais uma das maluquices, do PR, ou de qqer dos seus opositores. Todos se sentem enganados, e foram. Quem vai jogar o isqueiro no rastilho?

  26. Na época de Pablo Escobar, era impossível fazer com que o judiciário da Colômbia condenasse um único barão da droga que fosse. No Brasil ocorre o mesmo com os barões da corrupção. Fazem e modificam leis a seu favor e selecionam quem eventualnente os julgará. Não há futuro pro país com a impunidade que tomou conta dos três poderes.

    1. Como sempre análise perfeita!!!! O pior é que a banda podre do supremo cooptou quem parecia querer acabar com a impunidade.... Podres poderes.....

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