Os segredos de Bolsonaro
“Transparência acima de tudo. Todos os nossos atos serão e terão que ser abertos ao público. E o que ocorreu no passado também.” A frase dita por Jair Bolsonaro apenas alguns dias após sua posse, em janeiro de 2019, é mais uma entre tantas que viraram palavras ao vento. De lá para cá, o governo vem fazendo exatamente o oposto do que prometeu o presidente: banalizou os atos oficiais que ampliam o sigilo sobre informações. Na prática, o Palácio do Planalto e os ministérios têm demonstrado muito mais disposição para esconder do que para revelar.
Sem o menor constrangimento, o Palácio do Planalto recorre a brechas na Lei de Acesso à Informação, sancionada em 2011 e tida como ferramenta fundamental para permitir aos cidadãos acompanhar o que acontece na administração pública, e invoca desculpas muitas vezes esfarrapadas para restringir o acesso a documentos e outros dados considerados “sensíveis”. Há duas semanas, Crusoé revelou que a Secretaria-Geral da Presidência impôs sigilo de 100 anos sobre os crachás que dão aos filhos de Jair Bolsonaro acesso livre ao Palácio do Planalto. “As informações solicitadas dizem respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem dos familiares do Senhor Presidente da República”, argumentou o Planalto, que uitlizou a recém-editada Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD, para barrar o acesso aos registros. Os filhos de Bolsonaro têm os crachás desde abril de 2019.
A exploração das lacunas da Lei de Acesso à Informação, e agora também de dispositivos da LGPD, tornou-se uma espécie de escudo para evitar, especialmente, a divulgação de informações desconfortáveis sobre Jair Bolsonaro e seus familiares. Em maio, em mais um exemplo, o Planalto já havia decretado sigilo sobre a lista de visitantes recebidos pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, no Palácio da Alvorada. O argumento foi semelhante, e a solução encontrada para impedir o acesso à informação foi a mesma: a pretexto de não violar a intimidade de Michelle, os registros foram colocados em segredo por um período de um século.
Em março deste ano, o GSI de Augusto Heleno classificou como “reservados” – com sigilo até o fim do mandato de Jair Bolsonaro – os bancos de dados de entrada e saída do Palácio do Planalto de agentes públicos, funcionários do governo e até de jornalistas. A postura contraria não só a orientação da CGU como o manual interno da Presidência da República, produzido em junho deste ano, para instruir funcionários do Planalto. O manual reforça que a LGPD, usada pelo GSI para esconder informações sobre visitantes do Planalto, só deveria resguardar dados pessoais “sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico”.
“A LGPD tem como objetivo proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa. E, como a divulgação dos nomes de pessoas que entram em prédios públicos não viola qualquer desses princípios, nesse aspecto não há barreira imposta pela LGPD”, afirma o advogado Irapuã Santana, doutor em direito pela UERJ.
Firme na política de escamotear informações potencialmente constrangedoras, desde janeiro de 2019 a administração Bolsonaro já negou mais de 26,7 mil pedidos realizados com base na Lei de Acesso à Informação. Em 18,5% dos casos, escudou-se no argumento dos “dados pessoais”. Em somente 8,66% das respostas negativas, a razão estava fundamentada na própria LAI, que estabelece normas e procedimentos para a decretação de sigilo sobre informações públicas. Em outros 17,75% dos pedidos negados, o governo se baseou em outras leis, como as que tratam de sigilo fiscal, bancário ou empresarial.
A postura do Planalto se reproduz em outros setores do governo. Em dezembro de 2020, o Ministério da Saúde, ainda sob o comando de Eduardo Pazuello, decidiu tornar “reservado” o plano nacional de imunização, definido em outubro para guiar a campanha de aplicação das vacinas contra a Covid-19. A decisão foi baseada em três trechos da lei de acesso que autorizam o sigilo nos casos em que a divulgação das informações pode “pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população, oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do país” e “comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações”. Um falso argumento. O que se sabe hoje é que o que colocou em risco à vida dos brasileiros foi, na verdade, a própria política do governo para conter a pandemia.
No Itamaraty, de janeiro de 2019 até hoje, já foram classificados como “ultrassecretos” 159 telegramas, normalmente usados para a comunicação entre Brasília e as embaixadas do Brasil no exterior. Documentos com o carimbo de “ultrassecretos” podem ser mantidos sob sigilo por 25 anos, prorrogáveis por mais 25. Documentos produzidos durante a viagem do ex-chanceler Ernesto Araújo a Israel, em março deste ano, foram classificados como “secretos”, com 15 anos de segredo.
A falta de transparência não chega a ser uma marca exclusiva do atual governo. Nos governos de Michel Temer e de Dilma Rousseff, a partir do qual a Lei de Acesso começou a vigorar, os dribles nas normas para garantir o sigilo de informações também eram comuns – sob Dilma, 9 em cada 100 pedidos eram negados. Nada, porém, que sirva de argumento para que a gestão Bolsonaro se esconda sob o secretismo. Até porque o próprio presidente, ao assumir, prometeu transparência. “As decisões e as justificativas que vêm sendo usadas pelo governo para burlar a Lei de Acesso à Informação e classificar como sigilosas informações públicas são absurdas sob qualquer ótica. Para se ter ideia do grau de abuso, a classificação de um século de sigilo sobre os crachás de acesso dos filhos do presidente ao Palácio do Planalto é mais que o dobro da duração imposta pelo Pentágono sobre os documentos da Guerra do Vietnã”, afirma Bruno Brandão, diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil.
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