ReproduçãoAlberto Fernández aplaude Cristina: para 44% dos argentinos, é ela quem decide

Postes latinos

O triste destino de Argentina, Bolívia, Colômbia e Peru, com presidentes que não decidem sozinhos e se curvam aos projetos dos seus criadores, que misturam o público com o privado e ameaçam a alternância de poder
13.08.21

Vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner não tem nenhum pudor em assumir a dianteira do governo na Casa Rosada. Recentemente, ela articulou uma intervenção em uma exportadora de cereais e a criação de um imposto sobre fortunas. Também é ela quem dita boa parte da política externa e impede que os diplomatas argentinos condenem o ditador venezuelano Nicolás Maduro. A vice-presidente ainda apoia uma polêmica reforma do Judiciário e já botou para fora a ministra da Justiça, colocando em seu lugar um deputado kirchnerista. Atualmente, cerca 44% dos argentinos acreditam que é Cristina, e não o presidente Alberto Fernández, quem toma as principais decisões de governo.

A inversão de papéis se repete em várias outras democracias da América Latina. O colombiano Iván Duque é o poste mais antigo do grupo. Presidente desde 2018, ele segue à risca as ordens do ex-presidente Álvaro Uribe. Na Bolívia, o presidente Luis Arce é um fantoche de Evo Morales. O mais novo integrante da turma é o professor de escola rural peruano Pedro Castillo, que assumiu como presidente no dia 28 de julho. Apenas onze dias após o início de seu governo, uma pesquisa do instituto CPI indicou que 58% dos peruanos atribuíam as principais decisões do novo governo a Vladimir Cerrón, o secretário-geral do partido de esquerda Peru Livre.

Cerrón é um médico que viveu mais de dez anos em Cuba. Declara-se marxista e defende as ditaduras da ilha comunista e da Venezuela. Como governador de Junín, ele foi investigado e condenado por corrupção em obras de saneamento e de um hospital. Sem poder se candidatar ou ocupar cargos públicos, ele pinçou Pedro Castillo para concorrer às eleições e redigiu seu programa de governo. O documento propõe o controle da imprensa, o fim dos planos privados de previdência e a estatização de recursos naturais — ideias que Castillo tem confirmado em seus primeiros anúncios.

O fato de o presidente peruano não ter nenhuma experiência na política permite que Cerrón exerça seu poder com enorme liberdade nas coxias. Foi Cerrón quem escolheu os membros do novo gabinete, por exemplo. Na semana passada, ele caminhou por corredores de um hospital acompanhado de uma comitiva, como se fosse uma autoridade. Nas redes sociais, ele publica diversas mensagens que comemoram decisões do governo, como a retirada do Grupo de Lima, e sinalizam ações futuras, como a instalação de uma embaixada peruana na Coreia do Norte.

ReproduçãoReproduçãoPedro Castillo (esq.) com Vladimir Cerrón: no caminho de Cuba
O uso de postes políticos não é algo novo e nem está restrito à América Latina. O russo Vladimir Putin já usou Dmitri Medvedev como preposto quando não pôde ser presidente em um terceiro mandato consecutivo, entre 2008 e 2012. No Brasil, Lula escolheu Dilma Rousseff para as eleições de 2010. Oito anos depois, impedido de concorrer na eleição, tentou emplacar Fernando Haddad. O que torna o momento atual tão chamativo é a proliferação dos postes em vários países da região. Até a ditadura cubana hoje tem o poste Miguel Díaz-Canel, que segue as ordens de Raúl Castro.

A disseminação dessa prática pode trazer vários problemas. Para a democracia, o mais óbvio deles é ignorar o desejo da população que foi manifestado nas urnas. Os peruanos, afinal, não votaram em Vladimir Cerrón, que é rejeitado por 85% da população. “A maioria dos peruanos não é de extrema-esquerda. Eles votaram em Pedro Castillo, principalmente para evitar um governo de Keiko Fujimori. Para cerca de 70% deles, o melhor seria que o presidente adotasse uma postura de esquerda moderada”, diz Omar Castro, gerente-geral do instituto de pesquisas CPI, em Lima.

Os bolivianos também não votaram em Evo Morales. Em plebiscito realizado em 2016, a maioria recusou a possibilidade de um quarto mandato consecutivo para o então presidente. Os argentinos não votaram em Cristina Kirchner para presidente. Quase 60% deles hoje têm uma imagem negativa dela. Cristina só foi eleita porque entrou como vice na chapa de Alberto Fernández, a quem coube reunir as várias alas do peronismo em sua campanha eleitoral.

O estelionato eleitoral pode acabar em desastre, principalmente quando o poste demonstra inaptidão para o cargo. Dilma Rousseff sofreu impeachment, em 2016, após cometer uma fraude fiscal e empurrar o Brasil para uma crise econômica. Na Colômbia, Iván Duque é aprovado por apenas 20% da população. É um índice bem mais baixo dos 70% que teve Álvaro Uribe quando ele governou o país em dois mandatos. “Ao longo dos seus três anos de governo, a imagem que as pessoas têm de Duque não mudou e gerou uma explosão de memes, caricaturas e mensagens nas redes sociais, onde ele é tratado como fantoche ou vice-presidente. Essa sensação é acentuada por sua inexperiência, falta de formação como estadista e, em geral, pela estreiteza de espírito que o caracteriza”, diz o sociólogo colombiano Ricardo Vargas Meza.

ReproduçãoReproduçãoÁlvaro Uribe com Iván Duque: o poste tem apenas 20% de aprovação
Outro problema é que os mandachuvas que ungiram seus prepostos podem fazer uso de sua condição para obter benefícios pessoais. Na mesma toada de Lula e Cristina Kirchner, Evo Morales se livrou das acusações a que respondia na Justiça. Um decreto do presidente Luis Arce anulou todas as investigações, incluindo aquela em que Morales foi flagrado ligando para um narcotraficante e ordenando um cerco a La Paz. Nas últimas semanas, o ex-presidente, que não tem cargo oficial, tem viajado em aviões da Força Aérea Boliviana para diversas cidades do país. Também tem usado o Judiciário para perseguir seus rivais políticos. O oponente Carlos Mesa e a ex-presidente Jeanine Añez estão sendo acusados de tentar aplicar um golpe de estado. Jeanine, que assumiu a presidência interinamente depois que Morales abandonou o país em 2019, está presa. “Morales está preparando o seu retorno ao poder. Para isso, está eliminando todos os possíveis adversários para as eleições de 2025”, diz o cientista político boliviano Carlos Cordero.

Os postes, como mostra o caso boliviano, também podem ser um expediente para impedir a alternância de poder. Era esse o objetivo inicial do ex-presidente argentino Néstor Kirchner, quando colocou a própria Cristina, que hoje tem um poste para chamar de seu, para concorrer nas eleições de 2007. Os dois pretendiam se alternar na Casa Rosada indefinidamente. Em Cuba, Raúl Castro nomeou Díaz Canel para garantir a sobrevivência do regime e dos parentes e militares alocados em cargos-chave do poder.

O projeto de poder do casal presidencial kirchnerista foi interrompido com a morte de Néstor, em 2010. Nas outras democracias governadas por vassalos, a possibilidade de alternância de poder depende principalmente da capacidade de resistência das instituições. Na Bolívia, será grande a tentação de fraudar a eleição de 2025, assim como se fez em 2019. Nesta semana, um relatório da Organização dos Estados Americanos, a OEA, confirmou que ocorreram irregularidades no pleito, como a inclusão de dados de forma clandestina no sistema de apuração.

Na Colômbia, nenhuma medida foi tomada para manipular eleições, e o recurso do preposto saiu pela culatra. O desempenho de Iván Duque como presidente é tão fraco que o segundo turno da eleição do ano que vem deverá ter dois candidatos de esquerda. Será a primeira vez que isso acontece na história do país, tradicionalmente governado por políticos de direita. No Peru, a alternância dependerá do sucesso do atual governo em cumprir com suas metas. A rota traçada por Cerrón é levar o seu país na direção da ditadura cubana. Para isso, ele precisaria redigir uma nova Constituição, assim como ocorreu na Venezuela de Hugo Chávez e na Bolívia de Evo Morales. Em julho, o submisso Castillo deu sinal verde para a ideia. Os postes latinos têm se mostrado extremamente obedientes aos seus donos — para o azar dos eleitores que um dia acreditaram que eles poderiam ter luz própria.

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