SergioMoro

Vida digital

13.08.21

No início da década de 2000, um grande escândalo financeiro e criminal ganhou as páginas dos jornais e revistas, o caso Banestado. Em síntese, foi descoberto que contas bancárias de pessoas não-residentes no Brasil, as chamadas contas CC5, estavam sendo utilizadas para enviar ao exterior, de maneira fraudulenta, dinheiro de terceiros. Não havia nem há nada de ilegal em enviar dinheiro para fora do país, mas as remessas eram estruturadas de forma a evitar que o nome do verdadeiro titular dos recursos remetidos fosse revelado. Todo depósito efetuado em uma conta CC5 gerava um registro no Banco Central. Ocorre que profissionais de lavagem de dinheiro passaram a abrir contas em nome de pessoas interpostas – vulgos laranjas – e dessas contas faziam transferências para as contas CC5. Então era o nome dos laranjas, como a de um pipoqueiro na Ponte da Amizade, que aparecia ao Banco Central como titular de milhões de reais enviados ao exterior e não dos reais titulares dos recursos, entre eles políticos desonestos e até mesmo traficantes de drogas. Era, na época, lavagem de dinheiro, embora parte dos fatos tenha ocorrido entre os anos de 1996 e 1998, antes, portanto, da lei que criminalizou essa conduta no Brasil.

No decorrer das investigações, uma equipe da Polícia Federal foi destacada para rastrear o dinheiro no exterior e chegou à agência do Banco do Estado do Paraná, o Banestado, em Nova York. Boa parte dos titulares era de empresas offshore, com existência apenas no papel e controladas por doleiros brasileiros. Na continuidade das investigações, o rastro do dinheiro foi seguido para outras instituições financeiras estrangeiras. O Brasil teve alguma sorte, pois parte delas já era investigada pelas próprias autoridades dos Estados Unidos, com receio de que as estruturas financeiras opacas fossem utilizadas para financiamento de terrorismo ou lavagem de dinheiro.

Acabei assumindo a responsabilidade sobre esse caso em 2003, quando os processos foram remetidos de Foz do Iguaçu, onde tramitavam, para Curitiba, após a especialização de minha vara em crimes financeiros e de lavagem. O Ministério Público e a Polícia Federal constituíram uma força-tarefa e, tanto eles como todos os demais envolvidos, fizeram o máximo para que as investigações e as ações penais prosseguissem.

Entre as medidas tomadas, compartilhamos toda a documentação obtida no exterior, inclusive das transações efetuadas pelas contas offshore controladas por doleiros, com outros órgãos públicos, como a Receita Federal. Isso para que ela pudesse identificar brasileiros que eventualmente tivessem utilizado o serviço ilícito dos doleiros. Na maioria das vezes era apenas sonegação de impostos ou nem isso, mas em muitos casos era coisa pior, como lavagem de dinheiro de crime de corrupção, por exemplo.

Não tínhamos, porém, as milhares de transações no exterior impressas em papel. O que a equipe da Polícia Federal e do Ministério Público obteve foram os registros digitais das transações, na época ainda em CDs, HDs ou pendrives, mas todos eles com a certificação da origem. Lembro-me que, em determinada época, a Receita Federal indagou a mim se poderíamos entregar cópia das transações em papel. Temia ela que os registros exclusivamente digitais fossem questionados nos procedimentos fiscais e depois na Justiça. Infelizmente, a providência requerida era inviável. Não tínhamos como trazer um caminhão de documentos em papel dos Estados Unidos ou mesmo pedir que as autoridades de lá imprimissem milhares e milhares de páginas de extratos ou transações bancárias.

Conto o episódio para retratar o ainda início da era digital em Juízo. Embora a solicitação da Receita Federal já fosse à época anacrônica, ela retratava parte do espírito do tempo, ainda desconfiado das evidências e dos registros digitais. Com o passar dos anos, a vida digital expandiu-se em velocidade surpreendente. O próprio processo judicial tornou-se digital. As pessoas querem resolver o máximo de suas questões perante os órgãos públicos, ou mesmo no mercado, por meio de instrumentos digitais, à distância e sem deslocamento físico. O mundo ao alcance de sua mão em um smartphone. A pandemia do coronavírus, embora seja um evento trágico, teve o aspecto positivo de acelerar essa evolução para o mundo digital.

A Crusoé é uma prova viva ou uma prova digital da nova realidade. Desde o início, a revista foi lançada apenas no meio digital, não tendo exemplares impressos. Trata-se de uma opção bastante razoável quando a própria mídia impressa abandona paulatinamente o papel, buscando cada vez mais assinantes de suas versões digitais.

Este artigo que o leitor está lendo (espero que tenha chegado até aqui) existe, mesmo sendo digital. Não acredito que algum leitor tenha o costume de imprimir o texto antes de lê-lo. Confesso o vício de imprimir ocasionalmente alguns textos para uma conferência final. Mas isso decorre ainda de uma falta de costume com os textos digitais, certamente não presente nas novas gerações. Também ressalvo que não tenho o costume de conferir o texto do artigo impresso com o texto do artigo digital. Confio que o impresso e o digital têm conteúdo correspondente. Na verdade, basta o digital, assim como já bastava à Receita Federal no caso Banestado. Nos dias atuais, o digital é mais relevante do que o impresso. Sou digital, logo existo. Na próxima coluna, volto a escrever sobre uma questão relevante, sem diversionismo quanto ao que realmente acontece ou é importante.

P.S.: Este artigo não foi fraudado.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO