Reprodução/Al JazeeraOs talibãs assumem o controle do gabinete presidencial do Afeganistão

Por detrás de Cabul

Para além das dramáticas cenas dos últimos dias no Afeganistão, há um xadrez político arriscado que envolve as grandes potências globais. Entenda como se dá esse jogo e suas possíveis consequências
20.08.21

A tomada de poder no Afeganistão pelo grupo terrorista Talibã foi acompanhada de cenas dramáticas que causaram comoção internacional. No palácio presidencial em Cabul, barbudos armados vestindo turbantes e calçando sandálias posaram para uma foto com um fuzil AK-47 sobre a mesa. Em seguida, recitaram versos do Corão. Da embaixada americana, helicópteros decolavam a todo momento com diplomatas e seus familiares com destino ao aeroporto, onde milhares de civis invadiram as pistas. Alguns tentaram desesperadamente se agarrar ao trem de pouso e às asas de um cargueiro americano para escapar do pesadelo que se anunciava – o avião C17, com capacidade para 134 pessoas, levantou voo com 640 a bordo. Três caíram, entre eles um jogador de futebol com passagem pela seleção afegã. Na quarta-feira, 18, protestos contra o novo regime foram reprimidos com tiros. A despeito do cenário catastrófico, em momento algum o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, demonstrou disposição de reconsiderar a decisão de retirar os soldados americanos do país. Pode apenas estender o prazo para depois de agosto.

De uma maneira bárbara, o Afeganistão confirmou sua fama de ser um “cemitério de impérios”. Depois de lutar contra o Império Britânico e conseguir sua independência, em 1919 (15 mil militares mortos em três guerras), o país botou os soviéticos para correr em 1989 (outras 15 mil mortes). Agora, somam-se a eles os americanos e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan (2,5 mil militares mortos). É um histórico assombroso, que faz com que nenhuma nação minimamente sensata hoje esteja disposta a mandar soldados para o país.

A retirada americana abriu um vácuo que só será ocupado pelo Talibã”, diz o cientista político americano Colin Dueck, especialista em relações internacionais na Universidade George Mason. “Tudo o que veremos daqui para frente serão países avaliando suas conexões com o Talibã e estudando como poderão se ajustar ao grupo. Uma exceção será os Estados Unidos, onde haverá uma pressão muito grande para não reconhecer o próximo governo.”

Reprodução/The White House/YouTubeReprodução/The White House/YouTubeBiden, ao discursar sobre a queda de Cabul: ele tem certeza de que fez o certo
A China foi a primeira a se manifestar. O Ministério de Relações Exteriores do país declarou que “respeita as escolhas do povo afegão”, apesar de não ter ocorrido nenhuma eleição, e que pretende estabelecer relações amistosas e de cooperação. Desde 2014, delegações do Talibã têm visitado a China para conversar com funcionários do Partido Comunista, embora haja divergências claras entre as partes. Enquanto o estado chinês é laico e encarcera uigures muçulmanos em campos de concentração na província de Xinjiang, o Talibã promete declarar o Emirado Islâmico do Afeganistão e implementar a sharia, a lei islâmica.

A aproximação entre esses dois opostos se dá em nome do pragmatismo. Para o Partido Comunista chinês, a questão central é impedir ataques de terroristas muçulmanos contra o regime. Nos anos 1990, uigures muçulmanos e radicais mudaram-se para o Afeganistão e criaram o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental. Quando o Talibã controlou o Afeganistão pela primeira vez, entre 1996 e 2001, em um acordo informal firmado com os chineses ele se comprometia a impedir que os uigures planejassem e realizassem atentados na China. Um acordo semelhante deverá acontecer agora.

Para convencer o Talibã a fazer sua parte, a China oferece investimentos. “O Afeganistão é uma importante via de acesso aos mercados europeus e faz parte da Nova Rota da Seda. Desde 2015, há um enorme projeto de energia e infraestrutura, que inclui a construção de ligações ferroviárias e rodoviárias”, diz o advogado Marcos Vinícius de Freitas, professor visitante na Universidade de Relações Exteriores da China, em Pequim. Estatais chinesas já ganharam concessões para explorar uma mina de cobre em Aynak, a segunda maior do mundo, e petróleo no norte do Afeganistão. O país tem reservas avaliadas em mais de um trilhão de dólares em metais raros, mercado já dominado pela China.

Foto: ReproduçãoReproduçãoAfegãos invadem pista do aeroporto e se agarram em aviões: tentativa desesperada de fuga
A Rússia também tem cortejado o Talibã, apesar de a União Soviética ter sido expulsa do país no passado. Em 2011, o presidente Vladimir Putin enviou um representante especial para falar diretamente com o então líder do Talibã, o mulá Omar. O principal ponto de interesse dos russos na relação com os extremistas afegão é o tráfico de heroína e opioides — a Rússia é um dos países que mais sofrem esses dois tipos de narcóticos no mundo, e o Afeganistão concentra 85% da produção mundial. Também há muita preocupação com o Estado Islâmico, que tem recrutado cidadãos russos. Para as autoridades de Moscou, o Talibã combate o Estado Islâmico, o que explicaria as relações amigáveis com os mulás.

O risco de fazer qualquer acordo com o Talibã é que não há garantias de que os terroristas respeitarão o combinado. Após negociar um cessar-fogo com os Estados Unidos no ano passado, eles nada fizeram para conter a violência e seguiram realizando assassinatos seletivos. Além disso, seguem tendo laços fortes com a Al Qaeda, o grupo terrorista que, comandando por Osama bin Laden, morto pelos americanos, realizou os atentados em Nova York, Washington e Pensilvânia, em setembro de 2001– o que motivou a ocupação americana. Quando se acertaram com a China, os talibãs de fato não permitiram que os uigures atacassem Pequim, mas também não os expulsaram. A China pode até nutrir esperanças de que os líderes do Talibã cumprirão suas promessas. No entanto, o grupo é muito descentralizado e é provável que seus líderes não consigam controlar todas as suas diferentes facções”, diz Sean Roberts, professor da Universidade George Washington e autor do livro A guerra contra os uigures. Quanto ao movimento dos russos de tentar conter os radicais no Afeganistão, as chances de sucesso também são baixas. “Considerando o papel ativo que os russos tiveram em ajudar Bashar Assad na guerra contra militantes na Síria, hoje há um número muito grande de jihadistas querendo se vingar da Rússia”, diz Roberts.

O fato é que a palavra dos talibãs vale muito pouco. Mesmo com o grupo prometendo manter a ordem, embates entre suas diferentes facções e aliados são muito prováveis, o que prejudica os investimentos. Nos últimos anos, incertezas na área de segurança levaram ao fechamento da mina de cobre. O projeto petrolífero com os chineses também permanece parado. Outro ponto é que qualquer pedido para conter o tráfico de drogas seria inócuo, uma vez que a maior parte da renda do grupo vem daí.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisO presidente chinês Xi Jinping: Pequim faz aceno perigoso aos radicais
Um cenário bem provável é aquele em que vai sobrar para todo mundo. Mesmo países que hoje estão estendendo a mão para o Talibã poderão se tornar vítimas. O Paquistão financiou o Talibã e hospedou seus líderes, mas um dos bandos extremistas hoje no Afeganistão, o Talibã Paquistanês, ou TTP, tem como alvo justamente o Paquistão. O Irã, outro vizinho, festejou a tomada de poder do Talibã, contente com o fracasso dos americanos, mas facções do sunita Talibã nutrem um forte ódio contra os xiitas.

Entre as demais organizações terroristas com atuação por lá, está a já citada Al Qaeda, que tem vários de seus membros casados com mulheres de famílias de talibãs. A organização festejou a tomada de poder em Cabul. Desde então, vários de seus integrantes que estavam presos foram libertados. Por tudo isso, é fácil entender a agonia de afegãos no aeroporto de Cabul.

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