Marcos Corrêa/PRÀs vésperas do Sete de Setembro, Jair Bolsonaro e seus aliados estimulam a participação de policiais em manifestações

Capitão factoide

Para manter seus apoiadores mobilizados em torno do que ainda resta da cartilha bolsonarista, o presidente aposta no conflito, mas quase tudo é diversionismo. A questão é que, ironicamente, a confusão permanente interessa até aos atacados, como o STF
27.08.21

“O trabalho de vocês é um dos mais sublimes do Brasil. Além de jurar a verdade, vocês oferecem as suas vidas pelas vidas e pelo patrimônio de terceiros”, disse Jair Bolsonaro em dezembro do ano passado, durante uma cerimônia de formatura de soldados da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Desde que chegou à Presidência, Bolsonaro virou habitué de solenidades como aquela. Em eventos para comemorar promoções ou marcar o ingresso de novos integrantes nas corporações militares, ele tira fotos com familiares, recebe flores, ampara pais de oficiais mortos em serviço, faz flexão com as tropas e discursa em defesa de pautas caras à categoria. Nos últimos dias, apoiado na simpatia de que desfruta entre uma parcela dos fardados, o capitão da reserva colocou em marcha seu mais novo factoide. Depois de investir, sem sucesso, contra a independência do Congresso Nacional no debate sobre o voto impresso e de criar um clima de ruptura institucional com os ataques ao Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro e seus aliados passaram a investir no que seria uma espécie de insurgência das forças de segurança, especialmente as dos estados, contra o “câncer” do Brasil que ele diz combater, ainda que não explique exatamente do que se trata.

O novo movimento ocorre às vésperas do feriado da independência, quando apoiadores do atual ocupante do Planalto prometem sair às ruas. A tensão em torno do Sete de Setembro vem mobilizando parlamentares, governadores e autoridades do Judiciário, que se uniram para ampliar a vigilância sobre as tropas e evitar eventuais rebeliões policiais em apoio à retórica belicosa do presidente. Qualquer que seja o resultado das manifestações, Bolsonaro já conseguiu o que queria: sua mais nova investida golpista tirou o foco das graves suspeitas sob investigação na CPI da Covid e mobilizou seus apoiadores mais radicais. A cada factoide, a cada ordem unida, ele ofusca as concessões do governo ao Centrão, mascara as iniciativas oficiais destinadas a frear o combate à corrupção e esconde o fracasso retumbante de suas promessas de campanha.

Foto: Edilson Rodrigues/Agência SenadoFoto: Edilson Rodrigues/Agência SenadoCom sua retórica golpista, o presidente conseguiu tirar o foco da CPI da Covid
O clima de instabilidade institucional que já vigorava em Brasília se agravou depois que o presidente cumpriu a promessa e enviou para o Senado um pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal – a ideia era fazer o mesmo com Luís Roberto Barroso, mas por ora o plano está suspenso. A ofensiva contra Moraes já naufragou: o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, arquivou a petição nesta semana. Bolsonaro tinha ciência de que as chances eram nulas, mas agiu em linha com o anseio dos radicais que ainda o apoiam, assim como faz agora ao fomentar a ameaça de motim militar em apoio a seu governo. Policiais militares pelo Brasil afora, da ativa e da reserva, têm usado as redes sociais para manifestar apoio ao chamado do presidente. Esses gestos vêm gerando temor de que claques simpáticas ao presidente, com participação de militares armados, possam repetir por aqui cenas como as promovidas em janeiro deste nos Estados Unidos pelos apoiadores de Donald Trump que invadiram o Capitólio. Uma investigação em curso na Procuradoria-Geral da República tenta esquadrinhar os reais riscos – o procedimento é o mesmo que levou a Polícia Federal a cumprir, por ordem do ministro Moraes, um mandado de busca e apreensão em endereços do cantor sertanejo e ex-deputado Sérgio Reis, um dos responsáveis por incitar os bolsonaristas a “invadir o Supremo”.

Reprodução/GloboNewsReprodução/GloboNewsA invasão do Capitólio virou inspiração para os bolsonaristas
As regras militares, tanto no caso das Forças Armadas quanto no caso das polícias militares, são rígidas para evitar a politização dos quartéis e vedam manifestações de caráter político. Os estatutos das corporações classificam esse tipo de atitude como “crime militar”, mas fardados bolsonaristas têm apostado na leniência de seus superiores para se exibir como militantes políticos nas ruas ou na internet. Bolsonaro e seu entorno, claro, tiram proveito da onda e, espertamente, tratam de manter viva a ameaça. O próprio presidente, com regularidade, joga com as palavras de maneira a alimentar o clima de tensão. Em um vídeo de 54 segundos publicado na noite desta quinta-feira, 25, ele disse saber “onde está o câncer do Brasil” e exortou seus apoiadores a ajudá-lo a ganhar a “guerra”. “Eu sei o que tenho que fazer, dentro das quatro linhas da Constituição (…) Se o povo estiver bem informado e tiver consciência do que está acontecendo, a gente ganha essa guerra.”

“O que a gente vê é uma politização das polícias e uma militarização da política. É um movimento de duplo sentido”, diz Felippe Angeli, do Instituto Sou da Paz. A entidade fez um estudo sobre a crescente participação de policiais e de militares das Forças Armadas nas disputas eleitorais brasileiras. A eleição de um capitão e de um general da reserva em 2018 para os postos de presidente da República e de vice potencializou um fenômeno que já vinha despontando anos antes. Entre 2014 e 2018, o número de integrantes de forças de segurança eleitos deputados federais, por exemplo, saltou de 19 para 42. A tendência deve se repetir no ano que vem. Um sinal disso está na proliferação de policiais civis e militares “influencers” nas redes sociais. “O bolsonarismo é, na verdade, uma repaginação de um pensamento que sempre esteve presente. Ele vai a formaturas, comemora a morte de bandidos e louva operações, mas tudo isso é espuma porque, em dois anos e meio de gestão, ele não fez absolutamente nada de diferente, não desenvolveu nenhuma política para a segurança. O presidente se apresenta como guardião dos policiais, mas isso não passa de marketing”, afirma Renato Sérgio Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor do Departamento de Gestão Pública da FGV.

Foto: Isac NóbregaFoto: Isac NóbregaBolsonaro tem apoio de parte dos fardados, mas pouco fez em prol das polícias
Os factoides criados por Jair Bolsonaro para atrair a atenção da opinião pública, entretanto, não alteram a realidade: para além de as ameaças, ao menos até aqui, se restringirem à retórica de Bolsonaro e de seus apoiadores, muitas das pautas que ele defende vêm naufragando sistematicamente no Congresso. A derrubada da proposta do voto impresso foi apenas um dos reveses. A pauta de costumes, que inclui temas como a redução da maioridade penal, segue na gaveta, sem sinais de que sairá de lá até as próximas eleições. Além disso, são fartos os sinais de que o acirramento do discurso e a aposta no conflito permanente, ao mesmo tempo que servem para animar as claques mais fiéis, têm espantado eleitores mais moderados. “Para uma parcela do eleitorado, essas ameaças de ruptura são chocantes, inaceitáveis, sobretudo diante da insatisfação com o desempenho econômico do governo”, diagnostica o economista e cientista político Glauco Peres, professor da USP. “Bolsonaro vai continuar falando das ameaças do PT, da esquerda, e apostando sempre na manutenção de um ambiente caótico e confuso”, emenda Peres.

Ironicamente, a escalada da estratégia do conflito tem favorecido justamente os alvos do presidente. Lula, por exemplo, em sua tentativa de se reposicionar depois de ser arrastado para o centro do esquema do petrolão e de passar uma longa temporada na prisão, tem se esmerado para se colocar na vitrine eleitoral de 2022 como o oposto de Bolsonaro, em termos de racionalidade — e, aproveitando-se da estridência bolsonarista na internet, já diz que vai controlar a mídia se for eleito, um sonho do PT liberticida. O próprio STF ganhou uma espécie de redoma em torno de si na opinião pública a partir do instante em que começou a receber os ataques do ex-capitão. Ante os movimentos antidemocráticos do presidente, é raro encontrar, fora da bolha bolsonarista, quem não se alinhe à defesa da corte, mesmo tendo críticas a muitos dos procedimentos de alguns de seus ministros. Até mesmo o famigerado inquérito do fim do mundo, aquele que censurou Crusoé em 2019, agora é visto como instrumento em defesa das instituições porque tem sido útil para coibir os excessos das milícias bolsonaristas. A corte que reabilitou Lula eleitoralmente e, nos últimos tempos, deu contribuições relevantes para enterrar a Operação Lava Jato, a maior operação anticorrupção da história do país, se vê respaldada por um surpreendente apoio da sociedade. É uma posição cômoda. E, nessa toada, as decisões em favor de políticos enrolados continuam a sair sem maiores reparos ou críticas. Nos últimos dias, o tucano José Serra, o ex-ministro Geddel Vieira Lima e o notório Ciro Nogueira puderam comemorar vitórias no tribunal.

Os factoides do capitão são úteis a ele próprio, mas também servem a outras excelências que fazem o que querem sem ser cobradas por isso. Enquanto isso, o Brasil gira sem sair do lugar.

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