Capitão factoide
“O trabalho de vocês é um dos mais sublimes do Brasil. Além de jurar a verdade, vocês oferecem as suas vidas pelas vidas e pelo patrimônio de terceiros”, disse Jair Bolsonaro em dezembro do ano passado, durante uma cerimônia de formatura de soldados da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Desde que chegou à Presidência, Bolsonaro virou habitué de solenidades como aquela. Em eventos para comemorar promoções ou marcar o ingresso de novos integrantes nas corporações militares, ele tira fotos com familiares, recebe flores, ampara pais de oficiais mortos em serviço, faz flexão com as tropas e discursa em defesa de pautas caras à categoria. Nos últimos dias, apoiado na simpatia de que desfruta entre uma parcela dos fardados, o capitão da reserva colocou em marcha seu mais novo factoide. Depois de investir, sem sucesso, contra a independência do Congresso Nacional no debate sobre o voto impresso e de criar um clima de ruptura institucional com os ataques ao Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro e seus aliados passaram a investir no que seria uma espécie de insurgência das forças de segurança, especialmente as dos estados, contra o “câncer” do Brasil que ele diz combater, ainda que não explique exatamente do que se trata.
O novo movimento ocorre às vésperas do feriado da independência, quando apoiadores do atual ocupante do Planalto prometem sair às ruas. A tensão em torno do Sete de Setembro vem mobilizando parlamentares, governadores e autoridades do Judiciário, que se uniram para ampliar a vigilância sobre as tropas e evitar eventuais rebeliões policiais em apoio à retórica belicosa do presidente. Qualquer que seja o resultado das manifestações, Bolsonaro já conseguiu o que queria: sua mais nova investida golpista tirou o foco das graves suspeitas sob investigação na CPI da Covid e mobilizou seus apoiadores mais radicais. A cada factoide, a cada ordem unida, ele ofusca as concessões do governo ao Centrão, mascara as iniciativas oficiais destinadas a frear o combate à corrupção e esconde o fracasso retumbante de suas promessas de campanha.
“O que a gente vê é uma politização das polícias e uma militarização da política. É um movimento de duplo sentido”, diz Felippe Angeli, do Instituto Sou da Paz. A entidade fez um estudo sobre a crescente participação de policiais e de militares das Forças Armadas nas disputas eleitorais brasileiras. A eleição de um capitão e de um general da reserva em 2018 para os postos de presidente da República e de vice potencializou um fenômeno que já vinha despontando anos antes. Entre 2014 e 2018, o número de integrantes de forças de segurança eleitos deputados federais, por exemplo, saltou de 19 para 42. A tendência deve se repetir no ano que vem. Um sinal disso está na proliferação de policiais civis e militares “influencers” nas redes sociais. “O bolsonarismo é, na verdade, uma repaginação de um pensamento que sempre esteve presente. Ele vai a formaturas, comemora a morte de bandidos e louva operações, mas tudo isso é espuma porque, em dois anos e meio de gestão, ele não fez absolutamente nada de diferente, não desenvolveu nenhuma política para a segurança. O presidente se apresenta como guardião dos policiais, mas isso não passa de marketing”, afirma Renato Sérgio Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor do Departamento de Gestão Pública da FGV.
Ironicamente, a escalada da estratégia do conflito tem favorecido justamente os alvos do presidente. Lula, por exemplo, em sua tentativa de se reposicionar depois de ser arrastado para o centro do esquema do petrolão e de passar uma longa temporada na prisão, tem se esmerado para se colocar na vitrine eleitoral de 2022 como o oposto de Bolsonaro, em termos de racionalidade — e, aproveitando-se da estridência bolsonarista na internet, já diz que vai controlar a mídia se for eleito, um sonho do PT liberticida. O próprio STF ganhou uma espécie de redoma em torno de si na opinião pública a partir do instante em que começou a receber os ataques do ex-capitão. Ante os movimentos antidemocráticos do presidente, é raro encontrar, fora da bolha bolsonarista, quem não se alinhe à defesa da corte, mesmo tendo críticas a muitos dos procedimentos de alguns de seus ministros. Até mesmo o famigerado inquérito do fim do mundo, aquele que censurou Crusoé em 2019, agora é visto como instrumento em defesa das instituições porque tem sido útil para coibir os excessos das milícias bolsonaristas. A corte que reabilitou Lula eleitoralmente e, nos últimos tempos, deu contribuições relevantes para enterrar a Operação Lava Jato, a maior operação anticorrupção da história do país, se vê respaldada por um surpreendente apoio da sociedade. É uma posição cômoda. E, nessa toada, as decisões em favor de políticos enrolados continuam a sair sem maiores reparos ou críticas. Nos últimos dias, o tucano José Serra, o ex-ministro Geddel Vieira Lima e o notório Ciro Nogueira puderam comemorar vitórias no tribunal.
Os factoides do capitão são úteis a ele próprio, mas também servem a outras excelências que fazem o que querem sem ser cobradas por isso. Enquanto isso, o Brasil gira sem sair do lugar.
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