RuyGoiaba

Elegância é a verdadeira graça sob pressão

03.09.21

A definição de “coragem” como “grace under pressure”, graça sob pressão, é uma das frases mais conhecidas de Ernest Hemingway. Até onde sei, a origem não está nos livros dele, e sim no perfil que a grande Dorothy Parker fez para a New Yorker — no qual Hemingway, como bom escritor e macho man profissional, não diz a palavra “courage”, e sim “guts” (colhões). Traduzo aqui um trecho da reportagem da Dorothy (que ela me perdoe por isso, esteja onde estiver): “O sr. Hemingway não usou o termo ‘coragem’. Sempre eufemístico, ele se referia à qualidade como ‘colhões’ e atribuía a sua posse a um amigo ausente”.

Voltei a pensar nesse exercício da graça em condições desfavoráveis quando a imprensa internacional anunciou a morte de Charlie Watts, aos 80 anos, no último dia 24 de agosto. De lá para cá, praticamente tudo já foi escrito sobre o baterista dos Rolling Stones: as diferenças de personalidade entre ele e os colegas de banda (um lorde inglês entre velhos junkies), a competência no instrumento, a paixão pelo jazz, o episódio em que ele teria colocado terno e gravata para socar Mick Jagger (“nunca mais me chame de ‘seu baterista’!”), o carinho com que era tratado por seus pares e pelos fãs — não raro, era o mais aplaudido nos shows, em uma espécie de “piada interna” com sua timidez.

Dos inúmeros textos sobre Watts publicados nos últimos dias, o melhor talvez seja o de Michiko Kakutani, a veterana crítica literária do New York Times, que o descreveu da seguinte maneira: “Ele adorava tocar no palco com seus amigos, mas odiava a vida na estrada, odiava sair de casa, odiava as armadilhas do rock and roll — as festas, a imprensa, as garotas gritando. Enquanto seus companheiros de banda saíam tarde da noite, metendo-se em confusões, o sr. Watts costumava ficar em seu quarto de hotel, desenhando a cama” (Watts ganhava a vida como designer gráfico antes de enriquecer com as baquetas).

Mais adiante, Kakutani resume as contradições do baterista: “Um jazzista na maior banda de rock and roll do mundo, um cavalheiro antiquado entre piratas e bad boys, um sujeito caseiro que passou grande parte da sua vida profissional na estrada. Também foram suas contradições — seu estilo solto e oscilante combinado com seu amor pela precisão; sua técnica idiossincrática combinada com sua versatilidade notável — que o tornaram um baterista excepcional e o parceiro musical perfeito para Keith Richards na criação do som dos Stones”.

E talvez esse fosse o papel de Charlie Watts: ser o aparente cavalo de Troia de eras passadas “infiltrado” num símbolo da contracultura dos anos 60 que, na verdade, era o alicerce dos Stones e o segredo do seu balanço. Ao mesmo tempo, ele nos lembrava de como a elegância é uma qualidade rara, dentro e fora do mundo do rock. Na origem latina, associada ao verbo eligere, “elegância” significava o talento para fazer boas escolhas, e todo dia o mundo conspira para que a gente faça as piores escolhas possíveis. Eu mesmo sou deselegante com regularidade semanal aqui — apelo, porém, para a atenuante de que talvez não seja possível fazer humor sem ser um pouco malcriado. Já Watts conseguia ser elegante até na hora de usar os punhos contra um vocalista insolente. Um rockstar gente como a gente, só que melhor: um gentleman que batucava.

Nesta nossa época vil, em que é impossível para gente minimamente decente entrar em contato com coisas como a política brasileira sem se sentir bebendo um balde de água suja, a elegância é a verdadeira grace under pressure: um gesto de beleza e, ao mesmo tempo, um ato de coragem que jamais chama a atenção para si mesmo, diferente da macheza ostensiva de um Hemingway. Uma banana para as multidões deste mundo e suas exigências — mas com classe. É coisa difícil para qualquer um de nós, mas pode ser uma boa meta. RIP, Charlie.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Mesmo considerando que o governo de Jair Bolsonaro é campeão em provocar vergonha alheia, uma espécie de Michael Phelps do cringe, tive imensa dificuldade para assistir ao ministro do Turismo, Gilson Machado, assassinar Another Brick in the Wall, do Pink Floyd. Acompanhando-se à sanfona, Machado cantou em uma língua vagamente parecida com o inglês, como nas paródias do cantor Falcão — só que a sério. Teria sido melhor, como faz o próprio Falcão, aplicar a letra de Atirei o Pau no Gato à música de Roger Waters, mas a política brasileira é esse perpétuo esquete de programa humorístico ruim em que estamos presos, sem perspectiva de soltura. We don’t need no embromation.

Reprodução/InstagramReprodução/InstagramMachado, o ministro-sanfoneiro, é apenas mais um tijolo no muro do bolsonarismo

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO