MarioSabino

Renée

03.09.21

Quando eu tinha 18 anos, apaixonei-me por Renée. Não poderia haver amor mais platônico. Desde a primeira visão que tive dela, era como se Renée levitasse no ar — e, nessa sua leveza sem gravidade, anulasse também todo o peso do mundo. Quando me afastava de Renée, tudo voltava a ter peso, mas essa volta era lenta e, por breve momento, mais suportável aos meus ombros de rapaz que saía da adolescência. Foi um amor que durou três anos. Até que a sua leveza já não era mais suficiente para me despregar do chão. Despedi-me, prometendo voltar, mas foi mais uma promessa que não consegui manter, a primeira de tantas outras.

Renée era de uma loirice que se rendia ao castanho, em cabelos que iam até a nuca do seu pescoço de cisne. O seu rosto alongado lembrava o formato de uma máscara africana. Os olhos verdes estavam sempre marejados, mas a sua expressão não era propriamente de tristeza. Eram de compaixão pelos meus sustos com uma vida que se desvelava, desde cedo, tumultuada. Eu era um jovem aturdido e Renée compreendia que assim fosse. O meu refúgio eram os seus olhos verdes, marejados, compassivos, emoldurados por sobrancelhas tão altas quanto finas.

Ela usava uma pequena cruz de ouro amarelo, em corrente que dava duas voltas no pescoço e parecia cindir a sua cabeça do corpo igualmente alongado, como se Renée se quisesse busto. No início, era intrigante que figura tão leve usasse símbolo de algo tão pesado, mas não demorou para que eu me desse conta de que era natural que assim fosse. Ilustrava o fato de Renée ser capaz de fazer o mundo e todas as cruzes que o povoam entrarem em estado de suspensão. Ocorreu-me ainda que havia ali uma referência metafórica ao seu nome — o equivalente em francês a Renata, renascida.

A boca bem desenhada de Renée era o verdadeiro contraste com o resto da sua figura. Senão lasciva, tinha um vermelho de imensa força gravitacional. Era promessa de outra Renée que existia no seu interior, mas fora subjugada pela leveza que lhe era destino.

Os nossos encontros eram na Avenida Paulista, que neste 7 de Setembro mais uma vez será palco de manifestações. Renée estará lá, eu sei, levitando sobre o ruído, a violência e a vulgaridade, como de hábito. Ela nunca sai de lá. Foi pintada por Modigliani, em 1916, e faz parte do acervo do Masp. Talvez outros jovens tenham se apaixonado por ela depois de mim. Não tenho ciúme.

Deparei-me algumas vezes com o fantasma do seu criador, no Jardim de Luxemburgo. Em todas as ocasiões, convidei-o a sentar-se na cadeira ao lado, mas Modigliani se esquivou, duvidando de que não se precisava mais pagar para ocupar uma delas, e preferiu sentar-se num dos bancos desde o início gratuitos, bem longe de mim. Era num desses bancos que ele passava horas idílicas com a poeta russa Anna Akhmatova, que contou: “Modigliani era tão pobre que, no Jardim de Luxemburgo, ficávamos sempre sentados num banco, e não em cadeiras pagas, como era de praxe. Ele não se queixava nunca, nem da pobreza tão evidente, nem da não menos evidente falta de reconhecimento. Somente uma vez, em 1911, ele me disse que, no inverno anterior, estivera tão mal que não podia sequer pensar naquilo que lhe era mais caro”.

Eu apenas queria agradecê-lo por Renée. Ele não me deu chance. Entendo. Anna Akhmatova escreveu que Modigliani “parecia rodeado pelo círculo apertado da solidão”. Espero que Renée tenha lhe feito companhia durante certo tempo, como fez a mim.

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