SergioMoro

A Corte Superior Anticorrupção (da Ucrânia)

10.09.21

Quis custodiet ipsos custodes?” ou, na tradução literal, quem vigia os vigilantes, é uma questão clássica e recorrente na história.

Em determinada perspectiva, é uma questão direcionada ao controle de excessos na aplicação da lei por policiais, promotores ou juízes. No afã de aplicar a lei e punir criminosos, agentes da lei se excederiam no rigor e os excessos teriam que ser censurados. No Brasil, críticos da Operação Lava Jato alegam incessantemente que teriam havido excessos, muito embora tenham dificuldade de identificá-los ou descrevê-los. No fundo, não houve excesso nenhum — apenas a novidade da aplicação da lei a casos de grande corrupção, para o espanto daqueles acostumados com a impunidade.

Existe outra perspectiva bem interessante para a referida questão, a da insuficiência da ação dos vigilantes. Nessa, eles pecariam pela omissão e não pelo excesso. Agentes da lei, encarregados de investigar crimes, formular acusações e julgar processos, deixariam de atuar conforme exigido por seu ofício. Em casos criminais, o resultado da omissão é a impunidade, o que é bastante grave.

Para responder a graves omissões e, por conseguinte, à impunidade na violação de direitos humanos, a comunidade internacional reuniu-se e criou, em 1998, o Tribunal Penal Internacional, TPI. Veja-se que aqui a percepção é a de que os vigilantes nacionais precisam ser vigiados em suas omissões por vigilantes internacionais, de forma a assegurar que graves violações a direitos humanos não permaneçam impunes. Desde então, o TPI tem tido uma atuação positiva global. Interessante notar que as críticas a ele direcionadas têm maior relação com a falta de atuação em alguns casos apontados, como de graves violações de direitos humanos — mais uma vez pela omissão, do que propriamente por sua atuação nos processos que já julgou.

À semelhança do TPI, já defendi em artigo anterior nesta Crusoé a criação de uma Corte Internacional Anticorrupção. Ainda é um projeto em desenvolvimento, muito longe da efetivação, mas há um potencial.

Alguns países, para enfrentarem as omissões dos vigilantes tradicionais em relação à grande corrupção, buscaram soluções próprias, algumas bem interessantes. Um desses casos é o da Ucrânia. Após a assim denominada Revolução da Dignidade, de 2013 a 2014, e que envolveu a deposição do então presidente, houve impulso enorme para realização de reformas amplas nas instituições ucranianas. Entre os problemas identificados como de solução necessária, encontrava-se a recorrente impunidade da grande corrupção, com a dificuldade de os casos serem investigados e punidos pelas cortes de justiça tradicionais. Como resultado, desenvolveu-se na Ucrânia uma cultura de impunidade da corrupção, que afetou a credibilidade da Justiça criminal e, em parte, do próprio sistema político.

Uma das respostas foi a criação de uma Corte Superior Anticorrupção, com competência especial para processar e julgar casos de grande corrupção. Resultado: o álibi de que não havia tempo ou recursos para julgar os casos complexos de grande corrupção foi eliminado. Afinal, foi criada uma estrutura exclusiva para que esses casos recebessem a solução necessária. Um ponto fundamental dizia, porém, respeito à composição desse novo tribunal. Como garantir que fosse ocupado por magistrados éticos, imparciais e comprometidos com a missão básica, de que casos de grande corrupção, observado o devido processo, não ficassem impunes? Como evitar que a Corte Superior Anticorrupção não caísse nas mãos de juízes pouco comprometidos com o ideal que levou à criação da nova instituição? A resposta foi recorrer ao auxílio da comunidade internacional, por meio de organizações como o FMI, o Banco Mundial e a União Europeia. Magistrados, advogados e professores de direito ucranianos poderiam se apresentar, atendendo alguns requisitos específicos de idade e formação jurídica, como candidatos para a posição de magistrados da Corte Superior Anticorrupção. Foi, no entanto, criado um painel formado por especialistas internacionais, com o poder de veto sobre as candidaturas (“Public Council of International Experts”). A comunidade internacional indicou doze especialistas para formar o painel. Desses, seis foram selecionados pelo equivalente ucraniano ao Conselho Nacional de Justiça. O painel de seis especialistas realizou, então, um verdadeiro procedimento de due diligence, com entrevistas, checagem de antecedentes e de patrimônio dos 343 candidatos que se apresentaram para as 38 vagas de magistrados da Corte Superior Anticorrupção. O critério de avaliação dos candidatos adotado pelo painel foi o da dúvida razoável, barrando-se aqueles em relação aos quais houvesse questionamentos sobre a sua integridade. Veja-se que a dúvida não contava a favor do candidato, já que se buscava uma composição de um tribunal dedicado à anticorrupção e sobre o qual não poderiam pairar sombras sobre questões éticas. O recurso a um painel de especialistas internacionais, embora tenha envolvido certa disposição em relação à própria soberania, representou um expediente hábil, já que profissionais estrangeiros estão menos suscetíveis a pressões ou influências internas.

Os novos magistrados tomaram posse em abril de 2019. Nos primeiros 16 meses de operação, a Corte Superior Anticorrupção da Ucrânia havia proferido 23 condenações criminais. Em comparação, nos quatro anos anteriores, todas as cortes ucranianas haviam proferido apenas 33 condenações por corrupção, a maioria em decorrência de acordos criminais. Ainda é cedo para uma completa avaliação dos resultados, mas a Corte Superior Anticorrupção da Ucrânia representa uma promessa de uma nova fase no enfrentamento da grande corrupção naquele país. A experiência nos ajuda a refletir sobre as respostas possíveis para a questão colocada por este artigo: como fazer que as cortes de Justiça se tornem operantes em relação à criminalidade complexa, entre elas a grande corrupção? A solução ucraniana foi inovadora e contou com o apoio da comunidade internacional. Às vezes é preciso buscar uma solução fora da caixa. Talvez algo parecido seja recomendável nestas paragens.

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