A hora do impeachment de Bolsonaro

10.09.21

É uma palavra estranha: impeachment. Vem do inglês, to impeach — o ato de incriminar ou acusar, especialmente uma autoridade, de má conduta ou traição. A expressão é uma adaptação anglófona do francês, empêcher, que em português nós traduzimos como “impedir”.

As origens desse termo remontam ao latim, impedicare, que significa literalmente “colocar em algemas”. Impedicare, por sua vez, também é derivado de outra palavra em latim, mais específica: pedica – os ferros com que se prendem os pés de um prisioneiro ou de um animal para impedir seu movimento.

Impeachment, portanto, em sentido literal, é o processo que impossibilita as ações de alguém. Na política, é o impedimento do exercício do mandato de uma autoridade.

Esse conceito foi colocado em prática pela primeira vez no século XIV, no longínquo ano de 1376, quando um britânico chamado Lord Latimer foi alvo de afastamento da Câmara dos Comuns – o Parlamento Inglês – acusado, entre outras coisas, de corrupção.

Os autores da Constituição dos Estados Unidos adaptaram o sistema britânico e ajudaram a espalhar o conceito pelo mundo. Hoje, 94% dos países presidencialistas incluem mecanismos constitucionais capazes de destituir suas autoridades. E não é como se esse fosse um recurso pouco utilizado. De 1990 a 2020, num intervalo de apenas três décadas, houve pelo menos 272 acusações de impeachment contra 132 diferentes chefes de Estado, em 63 países no mundo — só a Noruega apelou para esse dispositivo oito vezes desde 1927.

Embora a saída definitiva do cargo seja algo relativamente raro, isso ocorreu aproximadamente uma vez a cada dois anos nos últimos 30 anos — foram os casos, por exemplo, do filipino Joseph Estrada, em 2001, e da coreana Park Geun-hye, em 2017.

Entre 1978 e 2019, a América Latina viu dez presidentes de seis países serem destituídos do cargo por meio do impeachment — ou da renúncia como tentativa de fugir do impeachment. Isso aconteceu, por exemplo, com o venezuelano Carlos Andrés Pérez, em 1993, e com o peruano Pedro Pablo Kuczynski, em 2018.

O Brasil teve cinco processos de impeachment contra presidentes da República. O primeiro deles em 1954, contra Getúlio Vargas. O pedido acabou rejeitado pelo parlamento, mas a pressão política foi tamanha que Getúlio se suicidou com um tiro no peito, dois meses depois. Com a morte de Getúlio, Café Filho, seu vice, herdou seu lugar, mas logo se afastou do cargo por problemas de saúde. A posição mais alta do país foi ocupada pelo então presidente da Câmara, um sujeito que você provavelmente nunca ouviu falar: Carlos Luz.

Luz entrou para a história por dois motivos. Em primeiro lugar é dele o recorde do mandato presidencial mais curto da República — míseros 3 dias. Além disso, ele também foi o primeiro presidente brasileiro afastado do cargo por um processo de impeachment. Quando Café Filho recebeu alta médica e tentou reassumir a presidência, também acabou afastado — o que significa dizer que tivemos dois processos bem-sucedidos de impeachment em 1955.

Além desses, Fernando Collor de Mello, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016, tiveram o mesmo destino.

Muitos países estabelecem bases relativamente subjetivas para o impeachment. Na França, o presidente pode ser afastado por qualquer “violação de seus deveres que seja claramente incompatível com o exercício de seu mandato“. Na Tanzânia, o presidente pode ser destituído se ele “se comportar de maneira que diminua a estima do cargo de presidente”.

Dezessete países dão a uma câmara alta — o Senado — a palavra final sobre o impeachment; 61 concedem essa palavra a tribunais ou conselhos constitucionais. No Brasil, os senadores têm a última decisão se um presidente deve ser afastado do cargo, mas é o Supremo Tribunal Federal que garante a legitimidade do processo.

Um presidente brasileiro sofre impeachment quando comete um crime de responsabilidade, conforme previsto na Constituição Federal e na Lei do Impeachment — a norma que define os crimes e regula o processo de julgamento. São crimes de responsabilidade cometidos por um presidente atentar contra 1) a existência da União; 2) o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; 3) o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; 4) a segurança interna do País; 5) a probidade na administração; 6) a lei orçamentária; e 7) o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Jair Bolsonaro recebeu 136 pedidos de impeachment desde que assumiu a presidência. Ao todo, esses pedidos foram assinados por mais de 1.550 pessoas e 550 organizações. Nenhum presidente na história do Brasil recebeu tantos pedidos de impeachment — Dilma teve 68; Lula, 37; Temer, 31; e FHC, 24. Ou seja, é preciso somar o total de pedidos de impeachment dos últimos 20 anos para alcançar o número recebido por Bolsonaro em dois anos e meio. Entre os pedidos, há a lista de dezenas de crimes, em diferentes categorias — incluindo o repetido discurso de ameaça à independência e harmonia entre os Poderes.

Mas este não é um processo apenas jurídico, como político. O impeachment oferece às democracias presas em crises de natureza política a chance de um “hard reset”. Além disso, este é um dispositivo que funciona como um freio contra os abusos e as ameaças de poder, mecanizado para defender o país da incapacidade, da traição e da negligência de um presidente.

A democracia é um modelo político superior às ditaduras não porque carrega uma fórmula mágica que elege os melhores. A democracia, quando funcional, é superior às ditaduras porque tem instrumentos capazes de impedir que os piores permaneçam no poder.

Ao fim, a melhor resposta para um apologista de ditadura ocupando a presidência da República — desqualificado, impotente e desacreditado pelas demais instituições republicanas — é a própria democracia. Não há impeachment, no entanto, sem participação popular. Insatisfação política sem protesto nas ruas não promove afastamento de presidente, mas nota de repúdio.

No passado recente, com multidões tomando as ruas, nosso país venceu a inaptidão de líderes à direita e à esquerda, condenados pelo processo de impeachment. É a hora e a vez deste destino alcançar Jair Messias Bolsonaro.

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