O que falta para enxotar Bolsonaro do Planalto?
Na última semana, um importante empresário de Santo André, município do ABC paulista, procurou Ciro Nogueira interessado em colher suas impressões sobre Jair Bolsonaro, com quem o ministro passou a conviver mais intimamente desde que assumiu o comando da Casa Civil, no início de agosto. Demonstrando certo fastio, Ciro não se preocupou em medir as palavras. “Está cada vez mais mercurial e incontrolável”, afirmou.
O diagnóstico perturbador do ministro recém-empossado com promessas de carta branca jamais cumpridas reflete o estado de ânimo atual de setores do Centrão e de boa parte do Congresso. Os fisiológicos, embora estejam bem-posicionados em postos estratégicos e se lambuzando no poder desde que o presidente lhes escancarou as portas do governo, já entenderam que a aliança tem prazo de validade – e que esse prazo não é longo. O presidente, para eles, é um político fadado ao infortúnio, seja pelo impeachment, pela cassação no Tribunal Superior Eleitoral ou pela derrota nas urnas no ano que vem.
Diante desse quadro, o desembarque do governo passou a ser debatido a sério entre os partidos que compõem o grupo. Temendo ficar ainda mais isolado, o presidente correu para avisar, por meio do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, que nomeações em estatais ainda em processo negociação podem ser destravadas imediatamente. Ainda há cargos nos estados a serem preenchidos, sobretudo no Nordeste e no Centro-Oeste, e Bolsonaro reabriu o balcão de negócios com o Congresso como parte do esforço para conter possíveis defecções em sua base de apoio.
O mais importante gesto de desespero, porém, veio já no fim da tarde desta quinta-feira. Dois dias depois de esbravejar contra o Supremo Tribunal Federal nos atos pró-governo do Sete de Setembro, Bolsonaro fez um inesperado aceno à corte, em um movimento que já pode ser considerado como o maior de todos os recuos já feitos por ele desde que chegou ao Palácio do Planalto, em janeiro de 2019. Em uma “Declaração à Nação” redigida pelo ex-presidente Michel Temer, chamado a Brasília para ajudar a apaziguar a relação com o STF, Bolsonaro disse que “nunca” teve “a intenção de agredir quaisquer dos poderes”. O presidente ainda reconheceu que “na vida pública as pessoas que exercem o poder, não têm o direito de ‘esticar a corda’, a ponto de prejudicar a vida dos brasileiros” e que seus ataques foram embalados pelo “calor do momento e dos embates que sempre visaram o bem comum”.
Nem parecia o mesmo Bolsonaro da antevéspera, que, falando a seus apoiadores, tanto em Brasília quanto em São Paulo, fez ameaças ao STF, anunciou que não mais cumpriria decisões de Moraes e disse que só sairia morto – ou preso – da Presidência. “Ou o chefe desse poder enquadra o seu (ministro) ou esse poder pode sofrer aquilo que nós não queremos”, disse na Esplanada dos Ministérios, referindo-se aos recentes despachos do ministro contra bolsonaristas. Mais tarde, já na Avenida Paulista, ele escalou o tom do discurso: “Tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos. Sai Alexandre de Moraes, deixa de ser canalha, deixa de oprimir o povo brasileiro”.
As reações imediatas aos ataques de tom golpista ao Supremo foram eloquentes. No Congresso, até partidos aliados começaram a discutir a possibilidade de apoio a um processo de impeachment. A leitura reinante era a de que, naquela toada, Bolsonaro se tornava ainda mais inviável como presidente e, como consequência, arrastava o país, ainda debilitado pela pandemia e com a economia em frangalhos, para o buraco. O presidente do Supremo, Luiz Fux, falou em “crime de responsabilidade”. “Ninguém fechará esta corte. Nós a manteremos de pé, com suor e perseverança”, afirmou, em um pronunciamento chancelado pelos demais ministros da corte. O mercado também reagiu negativamente. O quadro, já caótico, se agravou. Bolsonaro sentiu.
Não se sabe ao certo se o recuo costurado por Temer – responsável pela nomeação de Alexandre de Moraes para o Supremo – será para valer. Mas uma coisa é certa: ele não altera o fato de que Jair Bolsonaro é um presidente que não apenas não governa como atrapalha o país com as sucessivas crises que cria. Hoje, o único discurso que eletriza suas bases é o de contestação ao sistema, em especial ao STF. Sem essa retórica, os 25% que ainda lhe devotam fidelidade se liquefazem – prova disso é que, nas redes, muitos se disseram decepcionados com a inesperada “Declaração à Nação”.
O presidente age, em sua cruzada antidemocrática, como se não houvesse um país em frangalhos precisando ser consertado. No Brasil real, há 14 milhões de desempregados. A inflação, a maior em 21 anos, encosta nos dois dígitos. A pandemia, que já deixou mais de 585 mil brasileiros mortos, ainda está descontrolada. Não bastasse tudo isso, há uma crise hídrica batendo à porta que pode levar à necessidade de racionamento de energia elétrica. Na quarta-feira, 8, refletindo o clima tenso, o dólar subiu 2,87%. Foi a maior alta desde 24 de junho de 2020. A Bolsa registrou a maior queda desde a anulação da condenação de Lula pelo STF. “Depois do Sete de Setembro, houve uma mudança de patamar no grau de incertezas políticas. O presidente da República tem essa característica de testar limites e estressar as instituições. Essas incertezas geram um potencial maior de volatilidade”, diz a economista Zeina Latif.
Enquanto o Brasil derrete, a pergunta que se faz é o que falta para que o presidente, enfim, seja apeado do poder. “O campo democrático tem que se organizar. O poder organizacional golpista é muito maior. Falta sentar-se à mesa e negociar um pacto político não eleitoral para afastá-lo. As pessoas estão fazendo cálculos eleitorais, quando a eleição é apenas um dos elementos do problema”, diz o cientista social Marcos Nobre, professor da Unicamp e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
Em Brasília, ainda há quem espere por um escândalo derradeiro, uma bala de prata — ou por muita gente na rua no próximo domingo, 12, nos protestos contra o governo organizados pelo Movimento Brasil Livre e o Vem pra Rua, que estiveram juntos no impeachment de Dilma Rousseff. A linha vermelha, porém, já foi cruzada de maneira inconteste. À exceção das alas do Congresso que querem se aproveitar da debilidade do governo até o último instante possível, já existem saídas sendo costuradas nos bastidores. Logo após a barulheira do Sete de Setembro, as articulações afunilavam para o impeachment, ainda que não haja votos suficientes para colocar o plano em marcha com segurança – são necessários 342 na Câmara.
As atitudes de Bolsonaro nas próximas semanas podem definir o quadro. Na avaliação do presidente do PSD, Gilberto Kassab, que controla a terceira maior bancada da Câmara, a margem de Bolsonaro para barrar um impeachment está a cada dia mais “estreita”. “A base do governo já não é mais folgada, deve ser algo em torno de 200 parlamentares, um pouco mais”, disse, em entrevista à Folha de São Paulo. A opinião é compartilhada com outras figuras de relevo do universo político-partidário nacional. “Bolsonaro não tem mais a mínima capacidade de combater a fome, a inflação, os juros ou as mortes na pandemia. É absolutamente incompetente e incapaz de dar respostas”, diagnostica o deputado Marcelo Ramos, do PL, vice-presidente da Câmara.
É exatamente na Câmara que os próximos lances do jogo serão jogados. O comandante da casa, Arthur Lira, a quem cabe dar partida a um eventual processo de impeachment, ainda pisca para Bolsonaro. Na quarta, depois de consultar seus generais no Congresso, ele fez um pronunciamento lamentável, sem mencionar nem indiretamente o nome de Bolsonaro. A postura não surpreendeu. Lira e o Centrão são, hoje, sócios do governo. Ele, em particular, controla cargos-chave na Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, a Codevasf, e na Companhia Brasileira de Trens Urbanos, a CBTU, e é também responsável por autorizar a execução das polpudas emendas de relator– o famigerado orçamento paralelo de Bolsonaro, usado para manter satisfeita a base governista (neste ano, o valor das emendas de relator saltou de 17 bilhões para quase 34 bilhões de reais).
Um empecilho político para a tal “solução TSE”, segundo parlamentares ouvidos por Crusoé, são os militares. “Quem já discutiu essa possibilidade com oficiais graduados desistiu rapidamente de apoiá-la. Sem falar na confusão que isso causaria e na dificuldade de escolher um nome para a eleição indireta”, diz um deputado da base do governo. O grande objetivo de Lira é se reeleger presidente da Câmara em 2023. Até por isso, correligionários dizem que ele só autorizaria o andamento de um processo de impeachment de Bolsonaro no caso de ver seu projeto em xeque. “Esse pode ser o ponto de inflexão”, arrisca um parlamentar da cozinha dele.
Nos últimos dias, o presidente da Câmara tentou posar de construtor de pontes. Na tarde de quarta, ele foi ao ministro Gilmar Mendes, ao lado de Ciro Nogueira, na tentativa de acender o cachimbo da paz. Percebeu o ar rarefeito. Gilmar tentava alinhavar uma alternativa jurídica ao impasse do rombo dos precatórios, que daria ao governo um respiro orçamentário, mas indicou que o caso não tem solução. Os dois representantes do alto comando do Centrão saíram de lá convencidos de que não havia clima para pacificação e transmitiram essa impressão a Bolsonaro. Isso fez com que o presidente da República recorresse a Temer para destravar o diálogo com o Supremo. Diante da urgência, Bolsonaro enviou um avião da frota presidencial para buscar Temer em São Paulo. O ex-presidente chegou a Brasília às 11h30. Os dois almoçaram e permaneceram juntos durante toda a tarde. Foi quando Temer redigiu a nota em que Bolsonaro tentou afagar o STF e pôs o presidente e Alexandre de Moraes em contato. Horas mais tarde, o ex-presidente, com ar de satisfação, se incumbiu de falar sobre seu feito. Segundo ele, a conversa entre Bolsonaro e Moraes foi pacífica, com direito até a uma metáfora futebolística. “A partir de hoje a nossa única divergência será que eu torço para o Palmeiras e você para o Corinthians”, teria dito o presidente ao ministro, de acordo com o relato de Temer.
Até a noite desta quinta, Alexandre de Moraes não havia se manifestado. A ver como ele passará a proceder a partir de agora. A maior dúvida é se diminuirá o peso da caneta nos processos em que investiga as suspeitas de crimes que envolvem as falanges bolsonaristas. Por mais que, em meio aos ataques de Jair Bolsonaro, o ministro tenha recebido afagos e apoios de toda parte, seu estilo impetuoso está longe de ser uma unanimidade mesmo entre os críticos do governo. Em privado, muitos personagens relevantes do meio político avaliam que ele estica por demais a corda e, assim, acaba contribuindo para o tensionamento. Nesta semana, o vice Hamilton Mourão, que não é bem um defensor ferrenho de Bolsonaro, verbalizou a crítica, em tom sóbrio. “Juiz não pode conduzir inquérito”, disse. Isso não significa, obviamente, que o STF precise ser fechado, como bradava a turba bolsonarista, ou que seja aceitável um presidente da República não cumprir ordens judiciais.
A semana termina com uma enorme interrogação no ar. A dúvida, que só o tempo será capaz de sanar, é qual dos Bolsonaros vai sair do acordo surgido no pós-guerra: se será mesmo o sujeito manso da nota escrita por Temer ou se voltará à cena aquele outro, dos discursos golpistas inflamados do Sete de Setembro. Certeza mesmo há uma: nem um nem outro reúne mais as condições necessárias para conduzir o país.
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