Reprodução/FacebookJair Renan e Ana Cristina: escritório frequentado por gente interessada em facilidades no governo

Dupla sem limites

Ligação com lobistas e personagens do submundo de Brasília, intermediação de interesses junto ao governo e mudança repentina de padrão de vida: por que o filho 04 de Jair Bolsonaro e a mãe dele, Ana Cristina Valle, viraram uma abundante fonte de dor de cabeça para o Palácio do Planalto
17.09.21

A CPI da Covid aprovou nesta semana a convocação da advogada Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro e mãe de Jair Renan Bolsonaro, o filho 04 do presidente. Foi, mais do que qualquer coisa, um gesto político. Pode ser que o depoimento nem seja marcado, até porque a comissão está prestes a encerrar seus trabalhos. Mas é inegável que o nome da ex do presidente passou a fazer parte do mais destacado rol de personagens das investigações em razão de seus laços estreitos com Marconny Albernaz de Faria, o enrolado lobista da Precisa Medicamentos, empresa contratada pelo governo para intermediar a venda da vacina indiana Covaxin em um processo bilionário eivado de irregularidades. A ligação entre Ana Cristina e Marconny ficou patente depois que mensagens descobertas no celular do lobista revelaram que ele se valia da proximidade com ela para tentar influir em decisões do governo.

Filhos de presidentes da República deveriam manter distância regulamentar de qualquer negociação ou de interesses que orbitem em torno do governo. Todas as vezes em que essa linha foi cruzada, vide os escândalos envolvendo os filhos de Lula, os presidentes de turno passaram por maus bocados. Com Bolsonaro e os seus não é diferente. Só que, à diferença dos irmãos, o 04 parece ser um alvo mais fácil. Até por sua pouca idade e pelo seu conhecido deslumbramento, ele está mais exposto às técnicas de sedução que costumam ser usadas por lobistas e assemelhados que orbitam em torno do poder. Marconny Albernaz enxergou a oportunidade. Próximo de Ana Cristina, ele não apenas se utilizou dos canais que ela tem no governo pelo fato de ser mãe de um dos filhos do presidente, como passou a oferecer seus préstimos ao próprio Jair Renan. Coube a ele, por exemplo, cuidar do registro da empresa de eventos que o 04 abriu em Brasília, com sede em um camarote do estádio Mané Garrinha – onde, aliás, o lobista deu uma animada festa de aniversário.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéMarconny Albernaz na CPI: ele disse que faz “assessoramento político”
A empresa já começou atravessando aquela linha amarela que parentes de presidentes deveriam tratar como uma barreira intransponível. De partida, firmou uma parceria com empresários interessados em negócios no governo. Ganhou um carro elétrico avaliado em 90 mil reais. O relacionamento fluiu a ponto de a companhia, do setor de mineração, ter se valido do filho do presidente para marcar audiências com gente importante do governo. Foi por meio de um assessor do gabinete presidencial, por exemplo, que seus executivos conseguiram ser recebidos pelo ministro Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, para apresentar um projeto. A mesma empresa se encarregou de decorar a sede da empresa recém-aberta pelo 04. Descoberta, a parceria teve que ser interrompida porque, literalmente, virou caso de polícia. Um inquérito foi aberto na Polícia Federal para apurar tráfico de influência e lavagem de dinheiro. O caso acendeu um sinal de alerta no Planalto. Até o serviço de inteligência do governo foi acionado para tentar mensurar o tamanho da confusão, em uma trama que, no mais alto estilo pastelão, rendeu ainda mais confusão: um araponga a serviço da Presidência foi flagrado vigiando um parceiro de Jair Renan.

As histórias que envolvem Ana Cristina e Jair Renan obedecem, no geral, a uma mesma lógica, a da mistura de interesses. Empresários e lobistas se aproximam, oferecem facilidades e parcerias e, em contrapartida, tentam alcançar vantagens junto ao governo. Hoje com 22 anos, o 04 morava com a mãe em Resende, município do interior do Rio de Janeiro, antes de se mudar definitivamente para Brasília em março de 2019, três meses depois da posse do pai. Não demorou para que logo passasse a desfrutar das gostosuras que o sobrenome lhe proporcionava: convites para festas, ofertas de parcerias e muita gente interessada em fazer amizade. Ana Cristina desembarcou na cidade dois anos depois. E passou a, digamos, administrar o potencial do filho.

Até então, as aventuras do rapaz pelo mundo dos negócios eram um tanto rudimentares. Quem o orientava, e o ajudava a conhecer gente e prospectar oportunidades, era Allan Lucena, um jovem professor de educação física que Jair Renan conhecera na academia e havia virado seu personal trainer. Quando Marconny Albernaz apareceu, pelas mãos de Ana Cristina, as coisas começaram a mudar. Lucena, o personal – o mesmo que flagrou um araponga do Planalto em seu encalço –, foi escanteado. A pedido de Cristina, Marconny cuidou da formalização da empresa Bolsonaro Jr Eventos e Mídia e passou a acompanhar de perto os passos do 04 por Brasília. Graças à carta branca dada pela mãe, Marconny transformou o camarote 311 do Mané Garrincha, onde funciona a empresa, em um espaço de reuniões com pessoas interessadas em patrocinar os eventos e projetos de Jair Renan.

ReproduçãoReproduçãoO carro elétrico que a empresa do 04 ganhou: devolvido depois que a história veio a público
Também por meio dele, mãe e filho foram introduzidos nas altas rodas da sociedade brasiliense. Embora tenha entrado em cena para dar ares mais profissionais aos movimentos do garoto, o lobista acabou por virar mais um problema para os Bolsonaro. Ao mesmo tempo em que ciceroneava Ana Cristina, a quem procurava agradar convidando para festas com ministros de cortes superiores e oferecendo serviços exclusivos (ele chegou a contratar profissionais de beleza para atendê-la antes de uma festa de casamento), Marconny operava interesses elevados junto ao governo de Jair Bolsonaro. O mais vistoso deles, sob investigação da CPI da Covid, envolvia a Precisa Medicamentos, a obscura empresa que chegou a fechar com o Ministério da Saúde o contrato bilionário da Covaxin. Bem antes, ele já era investigado por suspeita de intermediar contratos fraudulentos com governos estaduais, como o do Pará. Foi dessa investigação, aliás, que vieram as mensagens de celular que acabaram por revelar sua proximidade com Ana Cristina e Jair Renan. No pacote, havia pedidos de nomeação. Ao menos um de seus apadrinhados, que disputava a direção de um instituto ligado ao Ministério da Saúde, obteve êxito depois de Ana Cristina se comprometer a ajudar. “Boa tarde, meu amigo, estive com o Jorge passei o caso prometeu que vai ver com carinho e coloquei na conta do Renan tbm agora vou esperar um pouco e cobrar, ok, bj”, respondeu ela. Jorge, no caso, era Jorge Oliveira, então chefe da Secretaria-Geral da Presidência, depois nomeado por Jair Bolsonaro para o cargo de ministro do Tribunal de Contas da União.

A mãe do 04 sempre fez questão de manter o sobrenome Bolsonaro como forma de abrir caminhos. Quem participa das reuniões no camarote do 04 diz que são comuns os pedidos dela para que o filho leve ao pai demandas de terceiros junto ao governo. Como a própria Ana Cristina não tem um bom relacionamento com Jair Bolsonaro, o 04 acaba por funcionar como um intermediário para o atendimento dos pedidos. No Planalto, ao mesmo tempo que a ex do presidente é considerada um incômodo, é sabido que rifá-la, para além de desagradar a Jair Renan, pode ter consequências explosivas. Durante o rumoroso processo de separação do casal, em 2011, Ana Cristina acusou Bolsonaro de manter um cofre com valores milionários em uma agência do Banco do Brasil. Também insinuou que o patrimônio do presidente foi construído com dinheiro de origem suspeita. Quando a querela veio à tona, ela recuou das acusações, mas até hoje insinua que pretende escrever um livro revelador.

Não há dúvida de que Ana Cristina tem realmente o que contar. Enquanto o casamento dela com Bolsonaro durou, o casal adquiriu uma extensa carteira de imóveis. Ela, sozinha, assinou nada menos que 14 transações imobiliárias. Nas investigações sobre o esquema rachid montado nos gabinetes da família, o Ministério Público reuniu indícios de que a ex do presidente teria sido uma das primeiras operadoras da coleta de parte dos salários de funcionários, antes de o esquema passar para as mãos do notório Fabrício Queiroz. Os promotores suspeitam que Ana Cristina gerenciava o rachid no gabinete do vereador Carlos Bolsonaro, o 02, na Câmara Municipal do Rio. As investigações mostram que, para além de ter parentes empregados pelos Bolsonaro, funcionários ligados a ela sacaram quantias milionárias no período em que estavam nomeados.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéA casa onde mãe e filho passaram a morar em junho: versão do aluguel é contestada
Na nova fase brasiliense, Ana Cristina e Jair Renan traduzem em vários aspectos as suspeitas que rondam o restante da família presidencial. Se até o início do ano eles moravam em um apartamento de três quartos registrado em nome de Jair Bolsonaro, em um bairro de classe média de Brasília, recentemente mãe e filho passaram a ocupar uma casa de alto padrão no Lago Sul, a área mais nobre da cidade – o mesmo, aliás, onde o senador Flávio Bolsonaro também fixou residência após comprar uma mansão de 2,4 mil metros quadrados por 5,9 milhões de reais. Ana Cristina diz que a casa é alugada. Só que há controvérsias. Em uma entrevista ao portal Metrópoles, um ex-funcionário da família afirmou que ela é a verdadeira dona do imóvel, que teria sido comprado com dinheiro de origem suspeita por meio de um “contrato de gaveta”. Marcelo Luiz Nogueira dos Santos, tratado até havia pouco como integrante do clã, trabalhava com Ana Cristina desde a primeira infância de Jair Renan. Por um período, ele também chegou a ser nomeado em gabinetes da família. Nos últimos tempos, a relação desandou e Nogueira foi ao Ministério Público do Trabalho para denunciar que era explorado pela ex do presidente.

De fato, ainda há peças que não se encaixam. A casa foi comprada em maio deste ano por um corretor de imóveis, Geraldo Antonio Machado, que mora em uma área bem menos nobre nos arredores de Brasília. Um mês depois da transação, fechada oficialmente por 3,2 milhões de reais, Ana Cristina e Jair Renan se instalaram na propriedade. Antes da mudança, mãe e filho frequentaram com assiduidade um escritório de advocacia em uma cidade vizinha a Brasília. Nesta semana, Crusoé apurou que Geraldo Machado, o corretor que aparece como dono da casa, visitou o escritório no mesmo período. Procurado, o dono da banca primeiro disse que presta serviços jurídicos para Ana Cristina. Indagado novamente sobre sua relação com o corretor que aparece como dono da casa, ele não quis mais falar.

O histórico da ex de Bolsonaro com lobistas e empresários não se resume à relação com Marconny Albernaz. Ela já foi vista também em convescotes na casa do lobista Silvio Assis, preso em 2017 em uma investigação sobre fraudes e corrupção no Ministério do Trabalho e amigo do peito de Ricardo Barros, o líder do governo suspeito de participar também das traficâncias envolvendo a aquisição da Covaxin. Como já mostrou Crusoé, Assis é anfitrião de animados jantares, regados a vinhos caros, para os quais políticos, empresários e altos funcionários públicos costumam ser convidados – até recentemente, os encontros ocorriam em uma casa que tinha até um detector de metais na entrada para, a depender da reunião, impedir a entrada de equipamentos de gravação. Foi nesse endereço, por exemplo, que o deputado Luis Miranda, aquele que denunciou a existência de um esquema em torno do processo de compra da Covaxin, afirma ter recebido uma oferta de propina do próprio Assis para não impor obstáculos ao negócio.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisMarcelo Nogueira com Jair Renan: ex-funcionário de confiança da família
Visivelmente deslumbrada, a dupla Ana Cristina e Jair Renan tem apostado ainda em negócios que, à primeira vista, parecem inocentes. Mãe e filho têm se dedicado, ultimamente, a fazer propaganda na internet de produtos que lhes são enviados por empresas interessadas em surfar na visibilidade que ambos têm nas redes sociais – há quem diga que eles cobram pela publicidade.  Em paralelo, Jair Renan também investe na carreira de gamer, enquanto faz incursões pelo mundo das subcelebridades. Recentemente, participou de um reality show transmitido no YouTube que quase lhe rendeu problemas — após um princípio de confusão com outros convidados, seguranças da Presidência que o acompanhavam tiveram de entrar em cena para conter os ânimos. Agora, ele promete abrir um novo flanco: pretende tornar-se empresário de cantores sertanejos em início de carreira.

Pela vida que compartilham na internet, o 04 e sua mãe parecem viver alheios às investigações que lhes batem à porta. Na tarde de quarta-feira, 15, enquanto Marconny Albernaz prestava depoimento à CPI, com menções a ambos, no Instagram Ana Cristina fazia as vezes de garota-propaganda de uma hamburgueria e Jair Renan se exibia degustando um churrasco na piscina de casa, em um vídeo no qual apresentava um tempero para carnes. Para evitar embaraços maiores, após a abertura do inquérito na Polícia Federal, o carro elétrico que a empresa de Jair Renan ganhou de empresários foi devolvido. Com a corporação sob o comando do delegado Paulo Maiurino, tido como fiel escudeiro de Jair Bolsonaro, por ora a investigação está estacionada. Sentindo-se livres para desfrutar gostosamente do momento, mãe e filho seguem na mesma toada, sem qualquer limite.

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