Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

As antirreformas de Bolsonaro

O governo teve a proeza de criar uma situação inusitada: graças à distorção das propostas encaminhadas ao Congresso, o empresariado agora prefere deixar as reformas econômicas para depois
01.10.21

A aprovação de reformas econômicas capazes de resolver problemas estruturais, equilibrar as contas e elevar a competitividade sempre foi um dos principais anseios do empresariado brasileiro, que nas últimas décadas pressionou o governo e o Congresso por mudanças nas leis de modo a tirar a economia do atoleiro. Só que a união perniciosa entre o Palácio do Planalto e o Centrão, consolidada no início da pandemia para salvar Jair Bolsonaro do impeachment, gerou uma situação inusitada: boa parte do mercado passou a torcer abertamente contra as reformas. É que para tentar aprovar propostas como as reformas tributária e administrativa, além de privatizações como a da Eletrobras, o governo precisou fazer concessões ilimitadas a parlamentares e segmentos com forte poder de lobby no Congresso. Essa rendição do Planalto aos interesses paroquiais de senadores e deputados acabou por desvirtuar as propostas essenciais para a retomada do crescimento, simplificação do sistema tributário brasileiro e moralização do serviço público. Hoje, o entendimento de segmentos do setor produtivo é o de que, ao invés de combater privilégios e distorções, os projetos do governo remendados no Congresso ampliam benesses, aumentam os gastos públicos e favorecem pequenos grupos. Portanto, é quase um consenso entre eles de que, agora, o caminho mais seguro é esperar o fim do governo Bolsonaro para voltar a discutir as reformas econômicas.

A reforma administrativa, indispensável para enxugar a gigantesca e ineficiente máquina pública brasileira, é uma das propostas que ganharam recentemente a oposição do mercado. Também pudera: o projeto do governo Bolsonaro, que já era problemático e combatia poucos privilégios, sofreu modificações que o transformaram em um disparate legislativo. Com isso, entidades defensoras históricas do aumento da eficiência do Estado passaram a chamar o texto de “antirreforma”“A reforma perde o apoio da sociedade civil se ela passa a dialogar com o patrimonialismo, com o corporativismo e com o clientelismo. E foi isso que aconteceu”, diz José Henrique Nascimento, do Centro de Liderança Pública. Por exemplo, a proposta aprovada numa comissão da Câmara, além de ter sido desfigurada para beneficiar determinados setores, não atinge as categorias mais privilegiadas do funcionalismo público, como juízes, desembargadores, ministros de tribunais superiores e membros do Ministério Público. Do mesmo modo que políticos com mandato, como deputados federais e senadores, não são alcançados pelo projeto. “As propostas em debate atualmente trazem benefícios de curto prazo com custos de longo prazo. Com um governo fraco, desarticulado e que não dá a devida importância à economia, é melhor não sair reforma nenhuma”, defende a consultora Zeina Latif, doutora em economia pela USP.

Laycer Tomaz/Agência Câmara/JCLaycer Tomaz/Agência Câmara/JCDe olho no voto: textos das reformas foram distorcidos para agradar o Centrão e as categorias que compõem a base eleitoral de Bolsonaro

As distorções são resultado do interesse dos parlamentares de, às vésperas de ano eleitoral, tentar agradar as categorias do funcionalismo. O que os move é a busca incessante por votos. O governo embarcou nessa mesma lógica eminentemente eleitoreira. Com histórico de quase três décadas de atuação corporativista no Congresso, Jair Bolsonaro sempre foi contra a PEC da reforma administrativa. Mas passou a dar aval à tramitação graças ao festival de benesses para servidores da segurança pública, que compõem sua base de apoio. Dois desses benefícios anulam ganhos para os cofres públicos conquistados com a reforma da Previdência. Um deles, garante a aposentadoria de policiais com a remuneração integral. O outro amplia a possibilidade de dependentes receberem pensão por morte de policiais.

Graças à pressão do Planalto, por muito pouco não foram aprovados dispositivos que davam foro privilegiado ao diretor-geral da Polícia Federal e permitiam que o chefe da PF escolhesse pessoalmente delegados para conduzir inquéritos estratégicos. O texto foi chamado de “artigo Salles”, porque poderia impedir, por exemplo, que o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles fosse investigado pelo então superintendente da PF no Amazonas, Alexandre Saraiva – o delegado acabou afastado justamente para que Salles não fosse mais importunado. Diante da reação negativa, no entanto, o relator recuou e retirou os trechos.

A reforma tributária segue na mesma toada. A reformulação do complexo sistema de impostos do país vinha sendo debatida há anos pela Câmara e Senado. A PEC, de autoria do deputado Baleia Rossi, do MDB, tinha forte apoio da maioria dos segmentos do setor produtivo. Mas como o autor foi adversário de Arthur Lira na disputa pela presidência da Câmara, o expoente do Centrão decidiu enterrar a proposta e recomeçar todo o processo, em articulação com o Ministério da Economia. A reforma foi fragmentada: um texto que trata sobre tributos relacionados ao consumo seguiu para o Senado e a revisão das regras do Imposto de Renda foi encaminhada à Câmara – e aprovada no último dia 3. O projeto passou a toque de caixa por interesses eleitorais: Bolsonaro vai usá-lo para compor o pagamento do Auxílio Brasil, um programa de transferência de renda que o presidente pretende transformar em programa de transferência de votos. Os efeitos são deletérios para o país.

A reforma do Imposto de Renda, por exemplo, estabelece a cobrança de taxas sobre lucros e dividendos distribuídos aos acionistas de empresas, hoje isentos, com uma alíquota de 15%. Na avaliação de especialistas, a taxação vai sobrecarregar pequenas e médias empresas e encarecer produtos. Para completar, a proposta que trata dos tributos, em tramitação na Câmara, também não resolve um dos principais problemas do sistema tributário brasileiro: a sua complexidade, que hoje é uma das causas da baixa competitividade das empresas brasileiras. “Isso acontece justamente no momento em que o governo elevou o IOF (imposto cobrado em operações de crédito, como empréstimos, câmbio e seguro). As empresas já estão vivendo um momento muito difícil”, lamenta o doutor em economia Roberto Ellery, professor da Universidade de Brasília.

A reforma do Imposto de Renda teve a oposição inusitada até da bancada do Partido Novo, historicamente defensor do liberalismo e da agenda reformista. “A gente votou contra por entender que ela representava um desestímulo ao investimento e à geração de emprego e renda. Ainda que houvesse um efeito positivo no curto prazo, os impactos no médio e longo prazo eram negativos. Foi uma reforma para inglês ver”, critica o deputado Paulo Ganime, líder do Novo na Câmara. Em junho, parlamentares alinhados à pauta das reformas já haviam se posicionado contra a privatização da Eletrobras. Como Crusoé mostrou na edição 161, os jabutis inseridos no texto por articulação do Centrão, ao mesmo tempo em que beneficiam um pequeno grupo de empresários, vão gerar mais aumento na conta de luz e podem anular ganhos obtidos com a venda da estatal. Com a proximidade da eleição e diante das concessões que Bolsonaro parece disposto a fazer para se reeleger, o cenário se assemelha ao final do primeiro governo Dilma Rousseff, em que, segundo suas próprias palavras, para alcançar a vitória nas urnas valia “fazer o diabo”. Deu no que deu. O PT legou ao país uma recessão econômica brutal. Bolsonaro precisa ser contido para não dobrar a meta petista.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO